King Richard – Criando Campeãs | 2021

King Richard – Criando Campeãs | 2021

A cinebiografia de Richard Williams, que concorre à estatueta de melhor filme do Oscar de 2022, não poderia ser mais formulaica. Reinaldo Morris Green, em seu terceiro longa-metragem, recorre a estratégias para lá de convencionais para fazer, a partir da história real de figuras interessantíssimas, um filme comum sobre uma história de superação. 

O longa retrata a empreitada de Richard Williams, interpretado por Will Smith, em fazer com que suas filhas Venus e Serena tornem-se as melhores jogadoras de tênis que o mundo já viu. Para isso, as garotas devem respeitar, rigorosamente, o plano que o pai traçou a elas, redigido, literalmente, quando ainda nem eram nascidas. 

É muito importante frisar que, apesar de Venus e Serena serem atletas cuja importância é difícil mensurar em palavras, o filme foca na figura de seu pai, seus métodos não ortodoxos de treinamento, sua obsessão pelo respeito ao seu plano e nas dificuldades que os Williams enfrentavam na cidade de Compton dominada por gangues de rua. 

Desde já, deve-se apontar um  grande mérito desta obra cinematográfica. A maior parte dos filmes que buscam retratar a prática de esportes pecam em não conseguir reproduzir fielmente como elas ocorrem, sobretudo por conta de encenações mal feitas e caricatas. No que diz respeito às cenas dos treinos e das partidas, têm-se que elas são extremamente fiéis ao que se vê nas partidas reais de tênis, o que é algo difícil de conseguir. 

É extremamente interessante que a motivação primeira de Richard Williams ao escrever o plano de vida das suas filhas seja exclusivamente financeira. Ele relata que, ao perceber que uma tenista havia ganho em poucos dias quase o mesmo valor que ele havia ganhado em um ano de trabalho, fala para sua esposa que deveriam ter mais filhas para que elas fossem tenistas. 

O filme mostra que Richard não possuía qualquer vínculo anterior com o Tênis, passando a estudar sobre ele após se dar conta da (boa) remuneração de uma atleta profissional, o que torna a sua obsessão pelo tênis ainda mais assustadora, por ser menos sobre o jogo e mais pelo dinheiro. 

 Há uma retratação romantizada do rigor extremo com que Richard Williams conduziu a formação de suas filhas a partir de uma disciplina de treinos e estudo que levou os seus vizinhos a até mesmo o denunciarem ao conselho tutelar local. Ainda que em algumas cenas o diretor tente evidenciar o lado intransigente e teimoso do protagonista, parece que, ao fim, sua postura com elas seja muito mais digna de elogios do que de reprovação. 

Parece que, ao fazer um juízo acerca do extremo rigor a que ambas foram submetidas, o olhar do espectador está viciado. Já conhecemos “o final da história” e sabemos “que ele é feliz”, o que faz com que se avalize a conduta de Richard Williams, a considerando indispensável pelo sucesso desportivo das atletas. 

As irmãs Williams, quando nos seus treinamentos com o pai, são colocadas no longa metragem como crianças que, além de talentosas, foram extremamente passivas ante a severidade paterna. Não são poucos os momentos que respondem, quase como se autômatos fossem, às perguntas e mantras do pai, que usava a possibilidade de vultoso ganho de dinheiro como mecanismo de convencimento, ao afirmar que, quando fossem atletas de renome, teriam quantas camas quisessem, a casa que quisessem, etc. 

Em nenhum momento o filme retrata aquelas crianças demonstrando algum tipo de insatisfação ou mencionando uma vontade de fazer algo que meninas daquela idade tendem a gostar de fazer. Não requerem para si momentos essencialmente seus. O motivo para isso parece ser a severidade de Richard. A única cena que retrata a insatisfação de Venus com o pai é sobre um assunto relacionado ao Tênis. 

É muito interessante que o tema “dinheiro” surja no filme com esta força. Muitos anos mais tarde, as irmãs Williams se colocam como relevantes vozes na defesa da igualdade entre as premiações pagas aos homens e mulheres no circuito do tênis profissional, uma vez que, ainda hoje, as atletas da Women´s Tennis Association (WTA) recebem valores menores que os pagos aos homens da Association of Tennis Professionals (ATP) na maioria dos torneios do circuito profissional. 

A figura materna da família  surge aqui como forma de contrabalançar o radicalismo de Richard, mesmo que Oracene (muito bem interpretada por Aunjanue Ellis) esteja engajada no plano do marido para o futuro das filhas. Contudo, sua participação nos treinos das meninas se dá de forma mais leve. 

Neste conflito entre Richard e Oracene acerca do rigor na educação das filhas e sobre a pouca participação materna na condução das carreiras das filhas, o filme traz um tema extremamente relevante na formação de jovens atletas. Não são poucas as vezes em que é dito para as jovens Venus e Serena se divertirem em quadra. Este é um ponto que, aparentando simplicidade, guarda uma enorme complexidade. 

Isso porque atletas oriundos de países com grandes investimentos no esporte podem “se dar ao luxo” de se divertir em quadra, se preocupando mais na evolução quanto atleta do que com o resultado. E podem, pois sabem que terão algum tipo de investimento em suas carreiras. No filme, percebe-se que, quando jogavam o circuito juvenil, Venus e Serena não saíram dos Estados Unidos, país com grande tradição tenística. Isso porque, sozinho, o país fornece uma grande quantidade de torneios e possibilita que os seus atletas consigam com maior facilidade (leia-se menor gasto de dinheiro e tempo), a evolução em seu jogo. Esta lógica funciona também para centros de treinamento: no longa-metragem, mostra-se que para conseguirem um treinador de elite, não precisaram abandonar os Estados Unidos e conseguiram permanecer, durante os treinamentos, na companhia dos pais. 

Tenistas brasileiros e brasileiras, por exemplo, não possuem a mesma oportunidade. O tênis é um esporte caro e os(as) atletas juvenis, via de regra, não possuem qualquer garantia que vão ter bancados seus custos de treinamento. Com poucas competições no Brasil, precisam viajar para fora do país para jogarem mais torneios e terem a possibilidade de conseguir pontos no ranking da World Tennis Tour Juniors. Apenas com estes pontos e um sólido destaque no circuito juvenil podem chamar atenção de patrocinadores e, daí, pensarem em se tornarem profissionais. Gustavo Kuerten, em sua autobiografia lançada em 2014, narra, enquanto atleta brasileiro, as enormes dificuldades que enfrentou neste circuito de juniores. 

Assim, estes tenistas juvenis precisam, invariavelmente, de vitórias. Só com elas, tenistas brasileiros poderão vislumbrar a possibilidade de continuarem na profissão. Sem elas, precisarão procurar outra coisa para fazer no futuro. E é aqui que a pressão por resultados cresce exponencialmente e o(a) adolescente não pode pensar só em se divertir em quadra. Enquanto alguns tenistas juvenis pensam, prioritariamente, em crescer tecnicamente e chegarem bem preparados ao circuito profissional, muitos outros preocupam-se “somente” em conseguir pagar as contas. Com isso, é impossível não pensar em quantas Serenas e Venus Williams poderíamos ter, em diversos esportes, se houvesse maciço investimento tanto do poder público quanto da iniciativa privada. 

Esta questão ficou ainda mais em pauta quando a Noruega, país outrora sem maiores credenciais nos desportos, conseguiu a primeira colocação no quadro geral de medalhas das duas últimas Olimpíadas de Inverno. Lá, existe uma grande campanha para que atletas noruegueses, em processo de formação, não sofram a pressão das competições. Prova disso é que neste país nórdico, em partidas envolvendo crianças de até os 13 anos, não há contagem de pontos, não há vencedores, não há perdedores, não há ranking. A prioridade é que se divirtam, usufruam daquela experiência. Este foco mais no desfrute da experiência do que na competição deu certo para os noruegueses, deu certo para as irmãs Williams.  

Com isso, em absoluto, não se intenciona diminuir o legado de Vênus e Serena Williams. O filme compreende uma faixa temporal específica de suas vidas, optando por encerrar antes de muitos outros feitos grandiosos ocorrerem. 

Venus Williams conseguiu alcançar o primeiro lugar do ranking de simples da WTA, ganhando quarenta e nove títulos de simples. Nenhuma outra tenista ganhou mais grand slams (na era aberta do tênis) do que Serena Williams. Não bastasse isso, conseguiu ser a número 1 do ranking da WTA tanto em simples quanto em duplas. As irmãs Williams protagonizaram, juntas, momentos muito especiais no esporte. Ganharam, jogando como dupla, três medalhas de ouro olímpicas (cada uma ganhou, no total, quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas) e quatorze títulos de grand slams, além de travarem, uma contra a outra, batalhas épicas nas quadras. Para além dos feitos absolutamente incríveis dentro de quadra, os seus legados fora dela parecem ser ainda maiores. 

As atletas precisaram superar uma série de barreiras durante a vida para alcançar o sucesso que tiveram, sobretudo por serem mulheres negras querendo “invadir” um esporte que, no mundo todo, é considerado elitista. Para ilustrar, impossível não lembrar que em 2010, no Brasil, em uma época que o país ainda possuía o Ministério dos Esportes (hoje nem isso temos mais!), Lula da Silva, o então presidente da República, ao ouvir de uma criança moradora da favela da Maré seu desejo de praticar tênis, disse que “Tênis é esporte de burguês!”.  

Vênus foi a primeira tenista afrodescendente a atingir o primeiro posto do ranking da WTA, posição que Serena atingiria depois e permaneceria durante incríveis trezentos e dezenove semanas. A força da representatividade, por certo, incentivou inúmeras atletas negras a praticarem Tênis e as fez pensar que também poderiam ocupar aquele espaço. O caminho aberto pelas irmãs Venus e Serena Williams se torna mais evidente quando percebemos tenistas negras figurando na atualidade os mais altos postos do ranking da WTA, como as ianques Sloane Stephens e Cori Gauff e a japonesa Naomi Osaka (que também alcançou o primeiro lugar). Antes das Williams, isso não ocorria. 

O racismo não poupa nem mesmo atletas bem sucedidas. Há anos, enquanto Serena dominava o circuito feminino de tênis, chegou-se ao ponto de se discutir e debater sua feminilidade, em virtude de sua potência física. O grau da discriminação é tamanho, que, entre diversos outros ataques à atleta, a famosa revista GQ, no ano de 2018, ao fazer sua edição anual em homenagem aos “homens do ano”, publicou foto de Serena Williams na capa, com a palavra Men riscada e, acima, a palavra Woman entre aspas. 

É apropriado lembrar que esta não é uma questão que seja exclusiva das irmãs Williams e nem mesmo do Tênis. Em 2009, após vencer importante competição, a corredora sul africana Caster Semenya teve que se submeter a um “teste de feminilidade” para, oficialmente, ser declarada campeã. Não é mera coincidência que Semenya também seja negra.

Sendo símbolo da luta contra a discriminação racial, Serena Williams engajou-se como ativista no movimento Black Lives Matter assim como em outras organizações, como por exemplo, que lutam pela promoção de igualdade de gênero.

Dito tudo isso, fica ainda mais evidente o potencial desperdiçado deste filme que, dirigido e roteirizado por homens, pretende contar a história da família Williams a partir da figura de Richard, relegando ao papel de coadjuvantes duas das maiores atletas da história do esporte, inegavelmente merecedoras de um filme melhor do que este, que provavelmente logo será esquecido.  

A abordagem dos aspectos envolvendo as dificuldades trazidas em virtude da discriminação por conta do gênero e da cor de pele, é ordinária .  Investindo suas forças em cenas tão bem construídas quanto convencionais, King Richard tem sucesso na sua pretensão de emocionar os corações mais moles e atinge, invariavelmente, os que não conhecem a história da família Williams e os feitos das irmãs tenistas. 

O filme, que trata de um período bastante específico da vida da família (apesar de ter 145 minutos de duração!)  cai na armadilha de romantizar o autoritarismo de Richard Williams (contando com o fato de o espectador já conhecer o sucesso esportivo das irmãs) e peca por explorar, de forma pouco original, aspectos que possuem muita relevância em suas histórias de superação e que demarcam, de forma fundamental, suas personalidades enquanto atletas cujo legado influenciam (e influenciarão) jovens ao redor do mundo durante muitos anos.

Nota

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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5 thoughts on “King Richard – Criando Campeãs | 2021

  1. Parabéns pelo texto Eduardo. Muito mais que uma crítica, foi uma aula. Quanta informação e tudo muito fluido. Obrigado por isto.
    Compartilho de muitas ideias que defendeu. Mas ainda acho que, mesmo sendo o Pai o grande protagonista e, assim, Venus e Serena apenas coadjuvantes, a visão sobre a mãe (e como você bem lembrou: um filme dirigido e roteirizado por homens) é extremamente desproporcional. A reduzem quase que a insignificância. Lamentável.

  2. Como era de se esperar, um texto cheio de curiosidades esportivas, cinematográficas e sociais que só o autor poderia nos brindar. Excelente crítica!

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