Para que serve o Cinema?

Para que serve o Cinema?

“a atividade artística, tal e qual a política, faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho”.

(RANCIÈRE, 1996, p.42)

A pergunta que inaugura essa coluna é uma das perguntas que frequentemente se faz não apenas sobre o cinema, mas para a arte de modo geral. Para que serve o cinema e as demais artes? Não é possível encontrar resposta certa para a pergunta. Responsável por produzir os mais diversos tipos de sentimentos, o cinema pode ser mais denso ou mais leve, agradável ou desesperador, escapista ou politicamente engajado. O simples fato de optar por uma das inúmeras possibilidades não faz um filme necessariamente bom ou ruim, útil ou inútil. No lugar das grades que predefinem exatamente o que a arte deve ser, há aqui uma porta aberta à criatividade dos autores. Essa constatação não deve impedir, porém, que sujeitos assumam preferências e reconheçam que diante da subjetividade que envolve a relação com a arte, aspectos pessoais de cada sujeito sejam determinantes para a sua própria percepção de uma obra.

Há uma relação conflituosa entre os padrões estabelecidos no cinema e a atividade criativa. Os modos de se fazer cinema mudam conforme o tempo, mas com frequência caminham para estabelecer novos padrões que podem ir desde as técnicas para manuseio de câmera até assuntos específicos que podem ou não ser abordados. As convenções podem ter origem em imposições governamentais, como o Código Hays; serem condutas estabelecidas pelos próprios criadores, como o Dogma 95; se estabelecerem a partir de uma lógica própria do mercado; ou quem sabe se tornarem convenções de modo mais ou menos espontâneo a partir do próprio fazer cinematográfico, sendo identificadas e consolidadas posteriormente pelos estudiosos da sétima arte.

Há, porém, uma máxima fundamental que é especialmente presente em atividades criativas: “regras servem para serem quebradas”. Quanto mais as convenções se tornam hegemônicas, mais tentador é também as subverter. Contra intuitivamente, porém, não costumam ser pessoas que desconhecem as convenções quem são os mais aptos a romper com elas, mas sim aqueles que melhor as conhecem, de tal modo que conhecer é um elemento anterior fundamental para romper. Os filmes que conseguem ser efetivos em seu propósito disruptivo comumente se transformam em objeto de apreciação dos estudiosos, passando a inaugurar um novo padrão para os anos que sucedem.

Assim, se compreende o cinema a partir dessa relação dialética com as convenções. Periodicamente se estabelecem padrões que tendem a ser aceitos e replicados até que passem a ser contestados, de forma teórica ou prática, terminando por serem repactuados novos padrões que seguirão o mesmo caminho de forma mais ou menos acelerada. Se estabelece, pois, uma relação paradoxal entre as convenções e a arte. Sem as convenções sequer seria possível identificar propriamente uma história do cinema. Sem a negação das mesmas convenções, o cinema seria previsível, sem graça. Em resumo, o cinema é livre para ser aquilo que ele bem entender – mas nem tanto.

Para além de aspectos mais específicos da linguagem cinematográfica, a mensagem também se encaixa de alguma forma no conjunto de elementos que costuma estar limitado por certas convenções. Para pensar no caso-limite, em nosso tempo atual basta verificar que obras que tenham em sua mensagem teor ofensivo às mulheres, aos negros ou a outros grupos não-brancos, à comunidade LGBTQIA+, certamente serão, no mínimo, alvo de repúdio público. A histeria de setores conservadores pelo fato de as obras estarem de alguma forma limitadas por questões identitárias demonstra o quanto, para o bem ou para o mal, as convenções seguem presentes.A discussão sobre os limites da mensagem vai longe. Um filme produzido em nosso contexto e que se coloque abertamente racista, por exemplo, terá grandes dificuldades para conseguir circular – e isso é ótimo. Há limites que são fáceis de serem estabelecidos e esse é um deles. Por outro lado, há filmes que podem trazer uma mensagem passível de ser compreendida como racista, mas não de forma tão explícita. Há ainda, é claro, aqueles que preferem passar longe desses temas. E mesmo que seja importante apontar para o caráter político dessa escolha, não é possível dizer que ela não seja igualmente legítima. 

Em resumo, parece possível afirmar, no que diz respeito à mensagem, que há alguns limites mais extremos estabelecidos, mas há também uma margem ampla de possibilidades para a criação artística que vai desde a arte que se propõe a ser engajada até outras que não assumem esse propósito ou mesmo fazem o inverso: assumem como propósito fazer filmes que levem o espectador a “escapar” da realidade político-social. Uma vez mais: dentro dos limites mais amplos estabelecidos, toda obra é igualmente legítima em seus propósitos.

Para quem se propõe a inaugurar um espaço como este para escrever sobre cinema, aparece aqui um problema importante. É possível avaliar obras com propósitos radicalmente distintos, quando não opostos, com alguma isenção? É possível avaliar a obra pelo que ela se propõe – isto é, verificar os méritos técnicos na execução dos propósitos estabelecidos por ela própria – deixando de lado o juízo sobre a mensagem propriamente dita? Não sei a resposta para essa pergunta. Desconfio da capacidade humana de abrir mão de suas visões de mundo para avaliar uma obra, seja ela qual for. Mas certamente há aqueles que conseguem fazer isso de forma minimamente consistente – e é bom que assim seja, do contrário a arte terminaria se tornando um campo restrito às subjetividades, tornando inviável a sua institucionalização e estudos em espaços especializados. 

Do ponto de vista pessoal, no entanto, me interessa muito especialmente perceber os filmes como instrumento de reflexão política. Para um professor da área de humanidades, as palavras nem sempre são suficientes para compreender e explicar temas tão complexos e por vezes tão distantes da nossa própria realidade social. Nesse sentido, os filmes a um só tempo ajudam a aprender e ajudam a ensinar. São, como afirmava Roger Ebert, máquinas potentes de gerar empatia. 

 E nesse sentido são também importantes não só para o entretenimento, mas também para a reflexão – ou, quem sabe, para a revolução, como pareciam acreditar Lênin, Eisenstein ou Glauber Rocha. Entretenimento e reflexão, contudo, não precisam ser pensadas de forma separada. Bons filmes, ao contrário do que muitas vezes se pensa, são capazes de cumprir esse duplo papel. Boas sugestões nesse sentido vocês terão nos textos que aparecerão por aqui.

O que pretendo que fique claro nesse texto inaugural é a importância que dou à mensagem. Mas não a mensagem pura e simples, desconectada de todos os demais elementos estéticos e da linguagem cinematográfica. Não se trata de analisar um filme como se analisa uma obra literária. Ao contrário, como afirma Dewey, trata-se de compreender que o estético não é o que está isolado para contemplação, mas o que nos envolve no mundo, de tal modo que estética e política se interpenetram: “a relação de presença e envolvimento nesse mundo social partilhado, bem como a possibilidade de agir sobre ele, configura uma experiência política. A experiência estética é, portanto, também política.” (DEWEY, 2010).

Não se trata de reduzir a complexidade de toda a produção artística à mensagem, é claro. Mas tratá-la como um elemento importante, ainda que não suficiente, para que um filme seja realmente muito bom. Há péssimos filmes empenhados em passar uma mensagem progressista. Há outros que são bons mesmo sem trazer uma mensagem poderosa. As obras prediletas na visão deste que vos escreve, porém, certamente são aquelas que são capazes de articular primorosamente esses dois aspectos. Se você se identifica com essa visão, espero conseguir trazer por aqui boas indicações e contribuir de alguma forma para a sua experiência com os filmes.

Até breve! 🙂

ALGUMAS REFERÊNCIAS

ASSUNÇÃO, H.S; MENDONÇA, R. F. A estética política da gambiarra cotidiana. Revista Compolítica, 2016, vol. 6

DEWEY, John. A arte como experiência. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.

RANCIERE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed.34, 1996.

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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