A Filha Perdida | 2021
“Num único ser humano existem outros seres, todos com seus próprios valores, motivos e projetos”. Esses os dizeres de Clarissa Pinkola Estés, na introdução do capítulo dois da obra literária Mulheres que correm com lobos. A personalidade do ser humano é composta de inúmeras facetas que se complementam para formar o ser único que ele é. Tais recortes são percebidos quando exteriorizados, por exemplo, através das tarefas exercidas por um indivíduo. Uma pessoa pode ser uma fenomenal pintora e igualmente incrível cozinheira. Pode ser uma ótima contadora e excelente surfista. Pode, ainda, refletir-se sem sentimentos. Uma mesma pessoa certamente pode ser ódio e amor. Entretanto, por qual motivo a sociedade exige que a mulher, após conceber, torne-se exclusivamente mãe e deixe de lado todas as suas outras facetas?
Essa exigência social, ou essa negativa da existência de outros seres que coabitam a personalidade da mulher mãe, se mostra de muitas formas, algumas bem sutis, outras nem tanto, e podem ser encontradas desde a patente diferença entre as licença maternidade e paternidade no mundo todo, na falta de estrutura de empresas e instituições públicas desprovidas de creches, como no sentenciamento coletivo experimentado pelas mães quando decidem priorizar uma carreira.
Adaptação do livro de Elena Ferrante, A Filha Perdida, estreia de Maggie Gyllenhaal na direção e indicado a três estatuetas do Oscar, é uma obra cinematográfica densa, incômoda, complexa, e difícil de assistir, principalmente, se a espectadora for mulher, porque inevitavelmente gerará autorreflexões e identificação. Todos esses elementos, por mais que possam parecer negativos, fazem da obra uma criação espetacular, uma verdadeira experiência de imersão ao peso dos julgamentos sofridos pela personagem e suas decisões.
Façamos um exercício. Pense em uma mulher que trabalha. Agora, pense em uma mulher excepcional em sua profissão, renomada naquilo que faz. Por fim, pense nessa mulher se tornando mãe. Se essa mulher optar por priorizar sua carreira e delegar a criação de seus filhos ao pai, quais serão suas impressões sobre sua decisão? Reflita se você se recorda de alguém nessa situação. Finalmente, pense em um homem em idêntica situação. É possível refletir se você conhece algum homem que delegou a criação dos filhos à mãe em prol de sua carreira pessoal? Suas impressões sobre ele são as mesmas?
Em linhas rápidas, o longa nos insere na jornada de Leda (Olivia Colman), uma professora universitária que durante suas férias na Grécia conhece uma jovem mãe, Nina (Dakota Johnson, muito competente). A maternidade avoca conexão entre as duas mulheres, o que gera em Leda uma profunda interiorização e autoanálise, que acompanhamos através dos flashbacks inseridos pontualmente para que conheçamos a personagem e seu passado. Descobrimos que ela desocupou o seio familiar e se afastou fisicamente de suas filhas durante três anos para dedicar-se à sua própria realização e carreira.
A personalidade de Leda, bem como sua história, são apresentados gradativamente sem qualquer pressa. Depreendemos, no tempo proposto acertadamente pelo ritmo do filme e com sutileza, que a princípio a personagem se encontra num momento pleno de sua vida, aproveitando suas férias na praia em sua própria companhia e muito satisfeita com isso.
Muito embora sua satisfação consigo mesma seja evidente, o fato de Leda mostrar-se só parece incomodar os pares que a rodeiam. Lyle (Ed Harris, sempre ótimo) é quem a recebe em sua hospedagem, implicitamente assumindo que mulher sozinha sempre precisará do auxílio de um homem, oferecendo-se para ajudá-la a todo momento, e presumindo, ainda, que uma mulher desacompanhada sempre estará sexualmente disponível.
A direção de Gyllenhaal cria uma ambientação tensa que transcende a tela. A impressão de que há algo errado é constante, já que a câmera insiste em closes faciais que provocam angústia e enclausuramento, o que facilmente pode ser compartilhado sobretudo pelas espectadoras, de modo que a existência de Leda como mulher solitária incomode e dê aos seus observadores direito de invadir sua vida.
A tranquilidade das férias de Leda termina com a chegada de uma volumosa família, que literalmente ocupa o espaço da protagonista. A presença da família é colocada em clara oposição ao seu modo de vida, e logo começa a perturbá-los com sua satisfatória solidão. Todavia, em meio àquelas pessoas expansivas, uma mulher jovem com sua filha pequena chama sua atenção, passando a observá-las, então, com certa obsessão.
A jovem mulher, Nina, é quem vai despontar memórias sobre a vida materna da própria Leda. Logo descobrimos ser ela mãe de duas mulheres já adultas, advindas de um casamento entre acadêmicos. A primeira infância das filhas coincidiu com momento aparentemente importante na carreira de ambos.
Aqui, é relevante ponderar sobre o desempenho concomitante, pela mulher, do papel materno e profissional, esses dois personagens que a enriquecem individualmente, mas que socialmente parecem não poder coexistir. Uma das muitas polêmicas geradas pelo longa circundam em sua desromantizada e realista abordagem da maternidade. Há, inclusive, quem acuse o filme de desestimulá-la. Leda é apresentada como uma jovem mãe que ao mesmo tempo em que precisa dedicar-se à carreira acadêmica, necessita cuidar das filhas pequenas, e que demonstra, inevitavelmente, momentos humanos de irritação e insatisfação. Socialmente, exige-se da mãe a priorização da maternidade em detrimento de todas as outras facetas da mulher, enquanto não se exige da figura paterna o desempenho do mesmo papel.
Por desejar coexistir como mãe e acadêmica e explorar suas individualidades, Leda pode ser julgada como péssima genitora. Por se irritar com suas filhas, pode ser tida como uma pessoa desprovida de amor materno. De uma mulher que opta pela maternidade exige-se que externamente seja demonstrada uma desumana e inalcançável perfeição. E parece-nos que externalizar e debater essas questões é um terreno quase que pecaminoso.
Nem de longe, o filme desestimula a maternidade. Pelo contrário, Leda mostra-se uma mãe bastante próxima e devotada às filhas, sendo evidente que sua camada materna lhe traz felicidade e a completa como pessoa. Os julgamentos sofridos pela protagonista dizem respeito justamente à não limitação de sua plenitude como ser humano à maternidade.
Nina e Leda conectam-se por vislumbrarem-se uma na outra. A jovem mãe parece ser a única responsável por cuidar de sua filha, em que pese o pai esteja presente. A complexidade da personagem de Nina reflete a profundidade da maternidade em si quando atende ao que se é socialmente esperado. Não há julgamentos para ela. Entretanto, sutilmente vai mostrando-se vazia, confusa de seu próprio papel como indivíduo, desalinhada de suas próprias vontades. Carrega uma tristeza inexpressável, uma angústia impossível de ser dita. Por isso, a jovem vê em Leda, uma mulher mais velha, mãe e realizada, uma esperança para ela mesma. A pergunta que faz à protagonista é muito significativa: “Vai passar?”. E a resposta: “Não”.
Por outro lado, Leda vê em Nina seu próprio papel como mãe na infância de suas filhas, refletindo sobre sua opção de coexistir para além da maternidade. Simbolicamente, o fardo do julgamento que transporta por suas escolhas pode ser percebido quando deliberadamente furta a boneca da filha da personagem de Dakota Johnson. Descobrimos que Leda dá às suas filhas uma boneca que lhe pertencia, e que foi por ela mesma destruída num momento de revolta. Aqui, é possível trazer o brinquedo como um elo de gerações que foi quebrado pela própria Leda, e que ela busca recuperar cuidando da boneca extraviada. A personagem carrega uma culpa que lhe foi imposta. Sente culpa por ter sido feliz longe de suas filhas.
Importante que se destaque, ainda, uma das integrantes da família de Nina, a figura de Callie (Dagmara Dominczyk), uma mulher grávida que exala críticas contra Leda e Nina, entende a si própria como uma melhor mãe antes mesmo de engendrar. De fato, parece-nos a representação da própria sociedade (e do próprio espectador), que se vê no direito de apontar falhas e repreender todas as mulheres que se tornam mães quando estas se revelam humanas. Parece, ainda, espelhar a mulher moldada para atender às expectativas da maternidade ideal. As expressões são muitas e não se esgotam aqui, certamente. A propósito, no cinema, nada se esgota numa via de interpretação única.
O ponto mais delicado (e indubitavelmente mais polemizado) do longa é a escolha de Leda por afastar-se de suas filhas para confiá-las exclusivamente aos cuidados do pai. Esse o foco principal do veredito social. Quando a personagem anuncia ao genitor sua decisão, as juras de amor dão lugar ao desespero e o primeiro passo da criação unilateral paterna: delegar a função à avó das crianças.
Notadamente, a narrativa nos faz associar a iniciativa de Leda à sua experiência e lembrança do acolhimento de um casal de trilheiros, cuja liberdade só foi possível após o desligamento do homem de seus filhos pequenos, delegados à mãe. A perturbação da personagem se mostra numa performance espetacular de Jessie Buckley, sua intérprete durante os flashbacks e seus questionamentos não necessitam ser exteriorizados. De fato, o afastamento do pai de seus filhos foi socialmente naturalizado. E quais são os motivos dessa naturalização? Por que aceita-se que o homem explore toda sua existência longe de seus filhos sem julgamentos? Enquanto ao homem dá-se a escolha de ser pai, à mãe, a obrigação não apenas de ser mãe, mas de sê-lo com exclusividade.
De mais a mais, a força das interpretações de Leda nas fases diferentes de sua vida que nos são mostradas é um dos elementos que tornam o primeiro longa conduzido por Maggie Gyllenhaal tão potente. Enquanto Jesse Buckley dá vida à protagonista nos flashbacks, a prestigiada Olivia Colman vive a personagem no tempo presente do longa. O alinhamento de ambas na personalidade e trejeitos de Leda é assombroso. Não se utilizam da atuação expansiva ou caricata para cativar o espectador, goste da personagem ou não. Abraçam a complexidade do papel. Ambas transitam pelas principais premiações do cinema e foram indicadas às categorias do Oscar de melhor atriz coadjuvante, para Buckley, e melhor atriz, para Colman. A potência do longa, diga-se, é mérito todo feminino. Gyllenhaal é responsável, além da magistral direção, pela adaptação do roteiro da obra de Ferrante, proeza, outrossim, indicada à premiação da Academia. O longa levou, ainda, os principais prêmios do Independent Spirit Awards: melhor filme, melhor roteiro, melhor direção e melhor atriz coadjuvante.
A escolha de Leda por si própria antes de suas filhas trouxe-lhe a plenitude necessária para coexistir e habitar todas as suas facetas. Tornou-se uma acadêmica referenciável, viveu sua sexualidade, sua individualidade, foi vista como mulher para além de ser mãe e foi feliz com isso. Quiçá, isso a tenha tornado um ser materno íntegro, mas ainda presa nas amarras do julgamento social que criam nela o sentimento de culpa que a persegue. A culpa, deveras, perseguirá a mulher independente da escolha que realize: ser mãe ou não, viver seu recorte materno com exclusividade ou explorar todas os outros, sair de casa ou não. Haverá sempre um dedo social indicando que todos os outros caminhos eram corretos, à exceção do escolhido. Mulheres se sentem culpadas apenas pelo fato de se sentirem representadas por Leda, como se o fato de não ser mãe com exclusividade significasse automaticamente não se realizar na maternidade ou ainda, não amar os filhos. Todas essas coexistências são possíveis. No entanto, enquanto essa possibilidade não for naturalizada, mulheres continuarão a sair do filme com uma sensação compartilhada de angústia muito real e perturbadora, num estado reflexivo e indignado na mesma medida. Foi assim que me senti por muitos dias. Foi assim que muitas mulheres se sentiram.
Filme belíssimo e a crítica não fica atrás! Parabéns!