Duna – Parte 1 | 2021
O cineasta canadense Denis Villeneuve aceitou o desafio de adaptar para o cinema um dos livros mais aclamados da ficção científica. Duna, de Frank Herbert, teria sido a grande inspiração para a saga Star Wars, o que acaba inevitavelmente gerando comparações entre o filme de Villeneuve e os de George Lucas e companhia. A escala épica é realmente a mesma, já que o diretor se propõe a fazer um filme introdutório do que pode vir a ser uma grande jornada de Paul Atreides (Timothée Chalamet) contra os Harkonnen pela salvação dos Fremen. Ao longo dos 155 minutos de projeção, o que se vê é um “filme-prelúdio”. Talvez essa opção do diretor seja a tentativa de evitar o erro da questionável versão de 1984 feita por David Lynch (o próprio diretor acabou tirando sua assinatura na obra). Nesta adaptação a compactação absurda da história levou à total falta de sentido. Agora, com o cineasta canadense, temos uma narrativa mais lenta que “termina com um começo”, e sem se constranger por isso.
Somos apresentados a um futuro onde a ambição humana atingiu escalas universais, com tecnologias que cruzam as fronteiras intergalácticas. Entretanto, é como se o sistema de vida tivesse regressado à Idade Média, ou, pelo menos, a um tipo de feudalismo cósmico. Cada planeta é gerido por um clã. Duas das chamadas “casas maiores” nos são reveladas e se tornam o centro de uma disputa política: em Caladan a Casa Atraides e em Giedi Prime a Casa Harkonnen. O universo é governado por um imperador e é dele que parece nascer o estratagema político que envolverá as duas casas. O interesse está no planeta Arrakis (também conhecido como Duna), fonte de uma especiaria fundamental para a conquista do espaço. A extração da substância é responsabilidade de um dos clãs. O filme começa com a transferência do poder sobre Arrakis dos Harkonnen para os Atreides. A princípio, não há muitas explicações para isso, mas fica claro que existe algo obscuro por trás dessa decisão: o Imperium busca acabar com o poder dos Atreides e para isso se filia com os Harkonnen. A saída destes é apenas provisória enquanto os Atreides são colocados em território hostil para serem derrotados em uma armadilha.
Para que toda essa história possa acontecer, são muitos os pontos a serem contextualizados. Existem rumores de que a Casa Atraides abriga o que seria o Messias do universo, Paul, herdeiro do trono. Essa possibilidade é reforçada quando uma das líderes místicas do império (Charlotte Rampling) visita a Casa e nota algo diferente no garoto. Então, logo percebemos que o clã Atreides realmente representa uma ameaça àqueles que buscam o domínio da especiaria e, consequentemente, o controle do universo. Para manter o poder do império e dos Harkonnen foi preciso um golpe. E é o que acontece. O ataque é à noite, não dando chances de resistência pelo exército Atreides. Os articuladores ainda contam com a traição de um membro do clã, Dr. Yueh (Chang Chen), chantageado pelo Barão Harkonnen (Stellan Skarsgård). Além disso, há a força de resistência do povo nativo do planeta Arrakis: os Fremen. Oprimidos por vários séculos, eles vivem em condições subumanas enquanto a especiaria é extraída de suas terras. O planeta das dunas ainda abriga vermes gigantescos (com vários quilômetros de comprimento!) que eventualmente atacam as estações de captação da especiaria atraídos pela vibração das máquinas.
Retratar o povo Fremen com características do oriente médio bem contrastadas com as das classes privilegiadas deixa clara uma intenção política de Villeneuve. Paul Atreides, ainda que faça parte do grupo opressor, apresenta empatia e se interessa pelo calvário dos Fremen. Aliás, o duque Leto (Oscar Isaac), pai de Paul, parece ter, no mínimo, ideias de conciliação com os moradores de Arrakis. Há, ainda, uma perspectiva religiosa: os Fremen se agarram à crença de que a opressão teria fim com a chegada do Messias. O tom conciliador dos Atreides é claramente oposto ao clima irascível dos Harkonnen. O Barão não tem escrúpulos para atingir o seu objetivo, inclusive ordenando o extermínio dos Fremen. Infelizmente, não é difícil vermos em nosso tempo guerras acontecerem pela conquista de uma substância essencial para a manutenção do status quo. Também é comum que um povo sob opressão se agarre a algum tipo de esperança metafísica, numa tentativa de reunir forças de resistência contra o colonialismo. Enquanto uns enriquecem, outros são chamados a resistir.
Villeneuve optou por construir um “filme-prelúdio” de uma história muito maior, escrita por Herbert em quase uma dezena de livros. Isso acaba nos levando a um problema apontado por grande parte da crítica cinematográfica: pouca personalidade é conferida aos agentes da saga. O personagem de Paul Atreides detém uma importância e complexidade maiores. Ele é um jovem que mal sabe quem é e o que representa naquele contexto. Ele desconhece as tramas políticas que envolvem sua Casa. Aos poucos, Paul é inserido nesse mundo, até porque é herdeiro do trono que assumiu o controle de Duna. Em sua primeira aparição na tela ele é um garoto sonolento que precisa se vestir bem para receber visitas. Ao final, ele se torna alguém já consciente da condição do povo de Arrakis. Esse é um dilema moral presente em várias obras do diretor: um personagem que é levado a reconhecer a imoralidade do sistema de vida. Mas, como outros assuntos no filme, isso também fica com um ar de “cenas para o próximo capítulo”. Quando ele parece tomar partido pelos Fremen e é aprovado no ritual de passagem, o filme acaba.
Se a maioria dos personagens são frios e pouco apresentados na trama, os aspectos técnicos são os pontos altos do filme. Todos os elementos reforçam as divergências entre os clãs. Se os Harkonnen vivem sob uma penumbra cinzenta, por outro lado, os Atreides têm um espaço mais azulado e receptivo. A maquiagem é bem sucedida em nos apresentar os vilões majoritariamente brancos e sem pelos, como se escondessem sua sujeira moral sob a máscara do colonizador ariano. O destaque também fica para a atuação de Stellan Skarsgård, que representa o Barão Harkonnen glutão e entregue a loucura da violência. Aliás, seu trabalho traz evidente inspiração no Coronel Kurtz de Apocalypse Now, aquele que também foi consumido pelo poder e nada vê além de sua própria ganância. Inclusive, Skarsgård encontra um tom de voz muito similar ao de Marlon Brando e reproduz alguns de seus trejeitos.
Diferente da versão de 1984, e como já dito, Villeneuve tem consciência do caráter político da saga Duna. Se os opressores são brancos sedentos pelo controle da especiaria, o povo Fremen é representado por um elenco negro, pardo e hispânico. O figurino belíssimo desenvolvido por Jacqueline West e Bob Morgan veste-os com referências do oriente médio e à África. A trilha de Hans Zimmer sempre inclui algum instrumento ou canto que remete àquele povo quando adentramos em seu território. A fotografia, assinada por Greig Fraser, também é fator importantíssimo em Duna, ressaltando uma densidade já característica dos filmes de Villeneuve. São elementos que juntos reforçam a tensão da situação e, portanto, não são simples adereços.
O povo oprimido tem pouca ou nenhuma voz no filme. Eles são vítimas de uma guerra que não lhes pertence, mas da qual se veem obrigados a fazer parte como resistência. Quando estoura o golpe, Paul Atreides e sua mãe, Jessica (Rebecca Ferguson), conseguem fugir. Logo, se filiam aos Fremen e entram na causa. Mas tudo isso fica para uma sequência. O chamado para a revolta está prestes a acontecer e o jovem Paul fará parte dele.
A sensação após a projeção é de que acabamos de ler a introdução de um livro ou assistir o primeiro capítulo de alguma série. Porém, fica o sentimento de que tudo ainda é muito superficial e está para ser revelado. Duna é um filme de apresentação e não parece querer ser mais do que isso, nos colocando à par do contexto que envolve aquele conflito e dos atores que estarão à frente da disputa. Na verdade, Denis Villeneuve assume esse papel com a competência já vista em outros de seus filmes, criando um clima de que algo grande está por vir (e esse “por vir” é na Parte 2). Nesse sentido funciona: um filme seriado épico que promete muitas coisas nas próximas “temporadas” (inclusive a participação efetiva de Zendaya).