O Amor Sublime nos musicais

O Amor Sublime nos musicais

“[…] o musical não se contenta em nos fazer entrar na dança, ou, o que dá no mesmo, em fazer-nos sonhar. O ato cinematográfico consiste em que o próprio dançarino entre em dança, como se entra no sonho”.

Deleuze

Nota sobre os musicais:

Os filmes musicais exigem uma predisposição do espectador: personagens que começam a cantar e dançar para reagirem a uma ação fogem do que estamos habituados. É uma relação diferente, por exemplo, dos filmes fantasiosos, como os de heróis que estão na moda hoje em dia. Por mais que os agentes tenham superpoderes (o que nos tiraria da realidade), a ação sempre corresponde àquele espaço fantástico criado para a narrativa. Quando se trata dos musicais, a correspondência com o real vai para outro nível: o sonho. Todos os elementos do filme são chamados a convergirem em dança e canto, rompendo com o tradicional esquema sensório-motor.

Tomando essa consciência já se dá um grande passo para apreciação desse estilo de cinema. O mais comum ao experimentarmos a sétima arte é enquadrarmos os signos dispostos em tela para o nosso mecanismo temporal. De imediato supomos que uma determinada ação de certo personagem gere uma reação em outro e assim sucessivamente. Dessa forma, construímos uma linha consciente do enredo e esperamos que ali esteja a representação desse sistema comum chamado realidade. A reação pode implicar ou invocar outros sinais de diversas maneiras, a depender das escolhas do diretor ou diretora: às vezes, uma ação se direciona para um afeto que atrai uma lembrança, outras vezes pode extrapolar a si mesma por uma via surrealista.

Parafraseando o filósofo francês Gilles Deleuze, o musical é um movimento despersonalizado que traça um mundo onírico, ou seja, escapa do nosso tempo cronológico e se insere no tempo puro. No sonho não há cronologia, mas a duração inconsciente das experiências que tivemos (ou que os personagens tiveram). Gene Kelly, em Cantando na Chuva, é como que absorvido pela dança. O desnível da calçada, a sarjeta, as poças d’água, o poste: tudo chama o sonho. Aos poucos os pés encontram um ritmo, as mãos fecham o guarda-chuva e nem as gotas parecem importar mais, isso porque o amor sublime transborda e faz da cena música. No caso dos filmes de Fred Astaire não é o mundo que o chama, mas ele que musicaliza seu entorno com a energia de seu sapateado. A babá perfeita Mary Poppins atende um chamado onírico das crianças para tirá-las da opressão patriarcal.

Um caso muito particular e especial entre o gênero musical é o filme Dançando no Escuro. O cineasta dinamarquês Lars von Trier não só é ciente da matéria que lida um musical, como inseriu isso na própria história, criando uma metanarrativa. A personagem interpretada por Bjork tem como subterfúgio seu sonho musicado. Sua única forma de sobrevivência diante do mundo é transformar os sons das máquinas a seu redor no ritmo que a eleva a tal ponto que sua cegueira desaparece. Talvez o leitor ou leitora já tenha se visto em uma situação assim: um estado de sonambulismo. Um som, um olhar, um cheiro, são elementos capazes de um transbordamento que facilmente se transformaria em música, não fosse o mundo lá fora para nos julgar como loucos. Mas a vida seria mais bonita se fosse um musical. 

Amor, Sublime Amor

Assista o trailer aqui.

O amor é um sentimento musical. É o momento em que qualquer racionalização nos escapa para dar lugar ao sublime. Este, por definição do filósofo iluminista Immanuel Kant, seria um estado caótico inerente aos indivíduos, mesmo o mais frio e racional. É quando paralisamos diante daquilo que nem a linguagem dá conta de explicar. É o que nos comove. Por mais que o mundo tenha nos tornado autômatos ou nos relegado as mais terríveis intempéries, ainda resta a esperança movida pelo mais puro ato de amor.

Em Amor, Sublime Amor, refilmagem feita por Steven Spielberg do clássico musical dos anos 60, o cenário é devastado. A região oeste de Nova Iorque é o gueto destinado aos imigrantes latinos, negros e pobres da cidade. É o retrato do ambiente hostil criado por homens para subjugar outros homens. Quem vive lá dificilmente vê saídas contra essa violência e acaba sendo tomado por ela. É o caso das gangues: os Jets, brancos descendentes de irlandeses, e os Sharks, imigrantes porto-riquenhos. Por mais que ambos grupos sejam vítimas da opressão capitalista, guerreiam entre si, uns buscando a conquista do território que julgam seu, outros o mínimo de dignidade contra a marginalização imposta. É possível que nesse contexto floresça o amor? O mais clássico dos romances, Romeu e Julieta de Shakespeare, é atualizado no filme por esse viés político para nos responder que sim, é possível.

A Julieta é Maria, porto-riquenha. O Romeu é Tony, ex-membro dos Sharks. Um relacionamento que seria incompatível se usássemos a razão instrumentalizada pela violência como se notava ali. Mas o sublime aparece. Em meio a dezenas de pessoas dançando em um baile, os olhares de Maria e Tony se cruzam. É o que basta. O primeiro encontro dos dois acontece ali mesmo atrás da arquibancada do ginásio. Demora um tempo para que eles troquem palavras. A única coisa que podem fazer é uma suave dança um para o outro, já que estão comovidos. Quando surge a fala é muito mais como um alerta da razão: devemos nos separar porque estamos de lados opostos na guerra. Essa ideia se reforça quando o irmão de Maria, Bernardo, descobre que os dois estavam juntos. É o estopim para o grande conflito entre as gangues.

Poderíamos logo pensar que o perigo iminente interromperia a relação dos dois; mas não. Como um sonâmbulo, Tony se vê dançando e cantando o nome que descobriu ser da moça que se apaixonara. É o movimento despersonalizado que se estabelece e faz de Tony um louco à procura da amada. Ele grita seu nome por todas as janelas esperando que de alguma apareça Maria. É o que acontece. Ela se vê impelida ao canto que afirma o amor proibido. Os dois resolvem fugir. Mas a razão logo toma frente novamente e no encontro seguinte já se faz presente a preocupação com o conflito que eles se acham responsáveis.

A partir daí o conflito entre o amor e sua privação, o indivíduo apaixonado e o meio, se reforça pelas mãos das gangues. Eles combinam sua derradeira luta que daria ao grupo vencedor o controle do território. Assim como Romeu e Julieta, o final é trágico. Os dois amantes se tornam vítimas da violência que os cerca. Tony não resiste ao impulso animalesco que transforma seus punhos em armas. A briga que ele havia planejado evitar acaba por despertar nele o mesmo instinto obscuro que já o havia levado à prisão durante um ano. Agora a fuga não é mais para o amor, mas contra seu próprio eu pulsional.

Novamente o amor sublime aparece quando Maria redime Tony de seu ato e reafirma a necessidade de abandonar aquele lugar em busca de viver esse amor. É uma ação incompreensível, tanto para o espectador, quanto para Anita, cunhada de Maria. Como pode amar tanto para perdoar o ato extremo de ódio? Mas o ódio persiste e a tragédia se fecha em um ciclo de morte. A cena final é o martírio dos povos que se perceberam dominados pelo sistema ao invés de se unirem contra ele. Ainda há amor suficiente para resistir?

Refilmar um clássico não é uma tarefa fácil. O fantasma da obra original persegue a produção. Mas Spielberg faz a única coisa que poderia fazer: o atualiza. Se na primeira versão tínhamos um filme politicamente problemático, aqui o diretor contextualiza o cenário político. O principal erro corrigido foi a inserção de atores de descendência latina no elenco. Rachel Zegler, Ariana DeBose e David Alvarez dão um show à parte. Justin Peck, responsável pela coreografia, não tenta imitar o filme anterior, muito pelo contrário, muda alguns movimentos para reforçar o engajamento do filme. Já na primeira cena não temos mais a perseguição entre Jets e Sharks, mas a reunião daqueles para vandalizarem a bandeira de Porto Rico na parede. Fica claro que os Jets estão longe de serem os protagonistas como na versão anterior.

A forma do filme traz características técnicas impecáveis como quase sempre se vê nas obras do diretor. Ainda na cena de abertura temos uma grande viagem da câmera que ambienta o gueto em demolição (o que o governo chama de desfavelização) e nos apresenta o submundo com um dos Jets saindo de um alçapão. Algumas mudanças de cenário com relação ao original favorecem a câmera de Spielberg. Por exemplo, uma das principais canções do musical, America, sai do telhado construído em um estúdio e vai para a rua em um movimento que contempla praticamente toda comunidade porto-riquenha.

Outras mudanças aparecem na ordem de algumas músicas, como I Feel Pretty, que agora funciona como instrumento de dramatização do ato final: enquanto a tragédia acontecia, Maria cantava feliz o quanto se sentia bonita. Rita Moreno, que volta ao filme que lhe rendeu o Oscar em 1962, agora interpreta Valentina, dona do mercadinho que serve de abrigo aos jovens gângsteres Jets. Ela tem uma função primordial no filme que a liga com o passado que repete seu ciclo no presente. Porto-riquenha que se casou com um “gringo” viu crescer a violência naquele bairro. É a única personagem que consegue transcender a guerra e percebe que o resultado do conflito sempre será mais violência. Ela tem a sensibilidade de apaziguar aconselhando Tony, da mesma forma como tem a firmeza para repreender, como quando chama as crianças que viu crescer de estupradores.

Esta versão de 2021 perde em alguns pontos que o clássico tem como forte. Spielberg abre mão das coreografias para aderir a um grafismo da violência muito maior. Os balés de briga viram socos sanguinolentos. Podemos entender essa escolha como uma demanda do público atual, mas fato é que uma das coisas mais marcantes do filme dirigido por Jerome Robbins (que também assina a coreografia) e Robert Wise eram as danças. A música também perde seu caráter “épico”, algo que era comum aos filmes da época, quando, inclusive, tinha-se um intervalo musicado no meio do filme. David Newman, que adaptou as músicas de Leonard Bernstein, escolheu se aproximar muito mais do jazz do que de grande orquestração. Este que vos escreve nunca foi um fã fervoroso do Steven Spielberg, ou, pelo menos, sempre o achou muito instável. Portanto, aceita a melodramatização que se excedia em outros filmes e que no cinema musical se encaixa perfeitamente, afinal, falamos do sublime e da imagem-sonho. O diretor faz uma obra sincera que parte de seu próprio apreço com o espetáculo da Broadway, atualiza pontos essenciais e conversa com nosso tempo e um público desacostumado com a linguagem dos musicais. Eis aqui um dos grandes últimos filmes de Spielberg, talvez acompanhado apenas por The Post.

Nota

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3 thoughts on “O Amor Sublime nos musicais

  1. Que texto mais inspirador, trazendo as mais brilhantes referências!! A crítica se mistura na descrição das cenas e da percepção do telespectador, trazendo imediatamente as cenas antigas e atuais, como se dançassem junto e cantassem a atemporalidade de seus temas! Lindo, Vini! Esperei por tua crítica ao filme e não me arrependo, vai tornar a experiência ainda mais especial! 😀 parabéns pelo texto, vou acompanhar sempre!

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