Ataque dos Cães | 2021

Ataque dos Cães | 2021

“Salva minha vida da espada, livra o meu ser do poder dos cães.”. O salmo bíblico 22:20 é defensivo. Transparece a necessidade do ser humano de sentir-se seguro e protegido. Há pessoas que encontram em si  portos seguros, guardando a capacidade de enfrentar o “ataque dos cães.” Outras, na falta de segurança interior, se entregam ao cão ou projetam proteção no outro. Esse reduto, esse resguardo necessário, pode aparecer sob muitas roupagens e camadas, como couraças que nos acobertam contra fatores externos que possam nos tirar de nossa zona de conforto. A defesa pode ser, ainda, subversiva.

O mesmo salmo não só dá nome ao longa dirigido e roteirizado por Jane Campion, mas dá movimento à narrativa em sua interpretação sob o aspecto defensivo à sobrevivência. Adaptado do livro de Thomas Savage, tido como autobiográfico, a obra cinematográfica mostra uma camada temática que engana ao primeiro olhar. Aparentando ser um filme exclusivamente de gênero, a ambientação western nos insere na vida estável de Phil e George Burbank (Benedict Cumberbatch e Jesse Plemons, respectivamente), irmãos que cuidam, há 25 anos, de um rancho situado na região noroeste dos Estados Unidos.

Entretanto, para muito além de ser fincado num contexto western, o longa é um complexo estudo de personagens e de masculinidades. É um trabalho psicológico intenso, de minúcias e sutilezas que obrigam o olhar atento do espectador e o fazem mergulhar naquele microcosmo de hostilidade. É uma obra tradutora de enorme expressão corporal através de pequenos gestos, um projeto sensorial que utiliza-se principalmente do tato e do olfato para dar significado às personalidades estudadas.

O detalhismo e o cuidado de Campion para com seu trabalho é soberbo. No minidocumentário Nos Bastidores com Jane Campion, a diretora relata como uma leitura despretensiosa do livro de Savage levou-a à sua projeção para o cinema após anos de estudo e junção de ideias. A obra literária perseguiu seus pensamentos por muitos anos até ser transformada em imagem e movimento.

Deste ponto, a complexidade e profundidade do filme torna mais apropriada sua análise em partes.  A primeira camada a ser explorada é o ambiente. A imensidão das colinas e do deserto que circunda os personagens é infinita e até mística. A beleza é arrebatadora e ao mesmo tempo enganadora. É nas montanhas que Phil fixa as melhores lembranças de um passado no qual ele encontra-se amarrado. As colinas, diga-se, são vistas pelo personagem em formato de boca de cachorro, aberta, pronta para receber suas presas, observação que orgulhosamente acredita que só ele seja capaz de perceber. Ele e Bronco Henry. No mais, pela zona desértica o gado é conduzido pelos irmãos em uma travessia que envolve riscos provocados pelo próprio fator ambiental, fazendo-se necessário proteger o gado de predadores e doenças como o antraz, uma toxiinfecção causada pela bactéria Bacillus anthracis e que pode ser transmitida ao ser humano quando em contato com o animal adoecido. A natureza exuberante, veja-se, protege-se através da hostilidade.

A segunda camada a ser dissecada é a da misticidade trazida pela figura onipresente de Bronco Henry, que integra a história pela insistência de Phil em torná-lo sempre vivo, como uma entidade superior. A veneração de Phil transcende a todos os cowboys, que exaltam o fato de que todo o estilo de vida e de trabalho do rancho é obra e influência de Bronco Henry. Os brindes são todos a ele, essa figura enigmática que não é, de fato, um personagem, mas que se faz o tempo todo presente. A constante referência de Phil a Bronco aguça a curiosidade do espectador quanto aos motivos que levam à tamanha devoção.

A terceira camada diz respeito aos elementos técnicos que compõem a atmosfera do longa. A trilha sonora sombria de Jonny Greenwood (cada vez melhor) insere elementos musicais do western apenas como pano de fundo, sendo responsável por uma atmosfera de ameaças e tensões, e usando de notas incômodas para expressar os conflitos que nunca se resolvem, mas apenas se inflamam. Por sua vez, o figurino traz à luz as oposições existentes entre os personagens, e a magistral fotografia da diretora Ari Wegner pincela a agressividade daquele ambiente.

Por fim, a quarta camada consiste no estudo dos personagens propriamente ditos, esses seres tão magistralmente inseridos naquele ambiente e que possuem, dentro de si, camadas e camadas a serem exploradas e trejeitos milimetricamente pensados, cuja riqueza é o combustível que vai incendiar a narrativa.

O brilhantismo de Campion reside, principalmente, na sua sutileza. Ela não necessita inserir na boca de seus personagens frases de efeito que deem conta do conflito instaurado entre eles. Não necessita escancarar a tensão nem trazer embates diretos. O erotismo não é dito, mas se faz presente. O estudo de masculinidades sob o ponto de vista de mulheres diretoras traz ao cinema, historicamente, obras muito mais sensíveis e honestas por justamente apresentarem um olhar subversivo a tudo que a sociedade entende como características masculinas normativas. Importante rememorar, neste ponto, obras como “Bom Trabalho”, filme da cineasta e escritora francesa Claire Denis, que traz uma abordagem bastante orgânica e belíssima sobre a convivência entre homens no exército.

Dito isso, o longa contextualiza, em sua introdução, a relação entre os irmãos Phil e George Burbank como personas opostas em todos os aspectos, mas que mantém uma interdependência latente. Os irmãos administram em conjunto o rancho há 25 anos da mesma forma. Dividem o mesmo quarto mesmo adultos. Phil faz questão de ser a representação do macho alfa, o cowboy tradicional, que não vê necessidade de tomar banho, e cuja presença é dominadora, imponente e respeitada. Suas passadas pesadas são ouvidas ainda que o personagem não se faça presente em tela (aqui, nota-se, o trabalho sensorial da audição). Phil sobe as escadarias de sua mansão a passos largos o suficiente para que não precise pisar em todos os degraus. Sozinho e sem luvas, realiza a castração de bois. Ele necessita transparecer força bruta. É um homem rústico, grosseiro, sujo e que cheira mal. Diga-se, neste ponto, que a potência de interpretação de Benedict Cumberbatch é responsável por tudo que dele podemos depreender. O trabalho do ator foi tão intenso que ele de fato permaneceu sem banho durante dias para incorporar Phil.

Em contraste, George Burbank, interpretado por Jesse Plemons com muita delicadeza e pouquíssimas palavras, é um homem contido, tímido, que mostra-se bastante desvinculado à figura do cowboy. As oposições a Phil falam através do figurino, dos trejeitos e da aparente questão que George faz em ser diferente do irmão (veja-se, logo no início, a longa permanência de George no banho). Irmão mais novo, não é seguido como líder pelos outros cowboys, sendo constantemente perseguido por Phil, que o vê, notoriamente, como um sujeito mais fraco.

Em que pese o antagonismo entre eles e a perseguição de Phil para com George, este representa para aquele a estabilidade que ele necessita para viver no passado. Se isso para Phil representa segurança e preservação do modo de vida ensinado por Bronco Henry, para George é enclausuramento.

A estabilidade e a segurança honradas por Phil são quebradas pela personagem de Rose (Kirsten Dunst). Mulher simples, viúva, ela cruza com os irmãos ao hospedá-los e servi-los em sua pousada e restaurante. Responsável por tocar seu próprio negócio com o auxílio do filho, Peter (Kodi Smit-McPhee), ela atrai o interesse de George.

A relação entre Rose e Peter excede a trazida pela maternidade. Ambos compartilham a dor pela perda do pai/marido pelo suicídio, e mantém entre si uma parceria onde um busca sempre, em primeiro lugar, proteger o outro. Com a morte do pai, Peter se entende responsável pela felicidade da mãe: “Quando meu pai faleceu, eu só queria a felicidade da minha mãe. Que tipo de homem eu seria se não ajudasse minha mãe? Se não a salvasse?”.

Há, neste ponto, uma importante subversão do que se entende por “ser homem”. Peter representa, externamente, tudo que o macho alfa não é. É um jovem sensível, cujas habilidades manuais transformam papel em lindíssimas flores. Cada movimento de suas mãos é pensado e racionalizado. Não há, nele, qualquer indicativo de brutalidade. Tais características logo chamam a atenção de Phil, que na primeira oportunidade humilha Peter em público fazendo alusão à sua masculinidade (ou a falta das características normativas dela).

A cena de contemplação de Phil às flores confeccionadas por Peter é por demais significativa, e traz à luz um dos traços sensoriais explorados por Campion na obra. A câmera da diretora mostra o dedo indicador de Phil tocando com erotismo as pétalas da flor de papel, cujo formato remete às características anatômicas da vagina. O toque dá lugar à repulsa representada não só na hostilização de Peter e suas aptidões, mas também no ato seguinte de Phil: incendiar a flor de papel, exteriorizando com extrema sutileza aquilo que o personagem abomina sexualmente.

A figura de Rose toma para si o sofrimento do filho. Ela não o reprime em nenhum momento e jamais busca fazê-lo ocultar sua sensibilidade e sua opção sexual (que novamente não necessita ser escancarada). Entretanto, ela não sabe como proteger o filho quando sua personalidade é confrontada pela figura imponente de Phil. Ela não é capaz de enfrentá-lo e sua impotência a desespera. A aproximação de George torna-se conveniente não só por sua sensibilização com o sofrimento da mulher, mas também pela segurança de vida que ele oferece, o que culmina com o casamento dos personagens e a ida de Rose ao rancho.

O casamento de Rose e George é um grito desesperado contra a solidão. É a libertação de George das amarras do irmão, o que dá lugar a um novo aprisionamento: o de Rose. Phil não esconde o quanto abomina a esposa do irmão e a invasão causada por ela do que ele tinha como garantido na vida. Ela vem representar a quebra de Phil com o modo de vida do passado de Bronco Henry. E por isso, a personagem passa não só a ser perseguida pelo cunhado, mas verdadeiramente assombrada. A presença de Phil, se já era incômoda, passa a ser aterrorizante.

O ápice da perseguição e a vitória de Phil sobre Rose é a nós trazido numa das cenas mais densas do longa. Com o casamento, George compra um piano para presentear a esposa, e espera que ela o toque num jantar que a apresentaria aos seus pais (e à high society daquele espaço). Rose se vê pressionada a deixar de ser a mulher simples que era para se ver inserida num espaço onde não parece pertencer. Se vê pressionada a impressionar os convidados do marido com habilidades musicais que não detém, mas que passa a se esforçar para adquirir. Phil nota o desespero da cunhada, e faz questão de o potencializar: enquanto Rose se esforça para ensaiar no piano uma única canção, Phil surge do alto das escadarias da mansão demonstrando pleno domínio musical de seu banjo, tocando a mesma música que Rose custava a aprender. Rose, aqui, se entrega, dando vitória a Phil, que a celebra ao assoviar a canção cada vez que Rose se aproxima.

O jantar decorre da pior forma possível para Rose. Trata-se de uma cena claustrofóbica. Muito embora Phil não estivesse presente na ocasião (por recusar-se a tomar banho), sua onipresença é por todos sentida. Rose e George não conseguem entreter os convidados. George não é capaz de manter um diálogo sem o irmão. Rose é humilhada por sua falta de habilidade ao piano e por não possuir os predicados esperados de uma mulher da alta sociedade. Os convidados clamam por Phil, e exaltam características dele que eram até então desconhecidas pelo espectador: aquele bruto macho alfa é conhecido por ser brilhante, e possui formação acadêmica em Yale. A partir de tal evento, a decadência de Rose e sua entrega à bebida (que ela repelia no início do longa) são diária e progressivamente provocadas por Phil.

A figura de Phil é de uma complexidade doutoralmente construída por Campion. A exteriorização de suas características muito acentuadas de macho alfa constituem sua couraça protetiva, que oculta não só sua faceta intelectual, mas os motivos que o levam a venerar Bronco Henry e o passado que ele representa. O passado precisa ser preservado por Phil para sua própria sobrevivência ao luto. As sutilezas que tornam perceptível a relação nutrida por ambos são, outrossim, bastante sensoriais. O tato é, de longe, o sentido mais explorado pelo personagem, sendo seu instrumento para acariciar a sela usada por Bronco Henry em suas montarias, e para esfregar em seu próprio corpo nu um lenço pertencente ao falecido. Em seguida, a experiência sensorial trazida pelo olfato também parece necessitar ser preservada por Phil, já que o uso das mesmas roupas sujas remetem-no ao cheiro do passado que ele não quer se libertar. 

Phil é homossexual, mas exala, em contraposição (ou escudo), comportamento homofóbico, principalmente contra Peter. E o personagem de Peter recebe, da diretora, o mesmo trabalho sensorial e subversivo. Kodi Smit-McPhee dá vida à Peter com muita maestria e abraça seu caráter sensível e concomitantemente racional, milimétrico, exato. Suas capacidades manuais são exaltadas durante todo o longa, seja no artesanato, seja na forma precisa como manuseia e carrega toalhas de mesa ao auxiliar sua mãe no restaurante, como também no uso cuidadoso de luvas (em oposição muito significativa à Phil em termos narrativos) e na precisão cirúrgica com que disseca um coelho. 

No caso de Peter, sua aparente fragilidade torna-se sua arma defensiva e manipuladora contra o poder do cão. Há importante fala sobre sua própria força. Peter, em conversa com Phil, revela que o falecido pai o repreendia por entendê-lo muito forte e insensível, o que naturalmente o surpreende. A masculinidade normativa confunde sensibilidade com fragilidade. Um homem, para que assim o seja considerado, deve ser desprovido de características consideradas femininas, principalmente no contexto temporal e espacial do longa. E é com sua aparente fragilidade que Peter consegue cativar Phil, vendo nessa aproximação uma oportunidade para libertar a mãe.

Essa aproximação se dá após Peter descobrir o reduto seguro onde Phil oculta revistas masculinas de fisiculturismo, e onde permite-se lavar pelas águas do rio (único tipo de banho possível). A nudez de Phil encontrada por Peter é tanto literal quanto subjetiva. A partir da descoberta (velada, pois a troca de palavras é muito limitada), Phil projeta a si mesmo em Peter, buscando moldá-lo em selvageria tal como Bronco Henry o fez. E é na sutileza das ações racionalmente elaboradas de Peter que o espectador se surpreende. As semelhanças entre os personagens vão muito além da opção sexual. As habilidades manuais são entre eles compartilhadas, e neste ponto, a simbologia da corda, tão eroticamente moldada por Phil, pode ser vista como um ponto de conexão entre as personagens. Entretanto, são suas facetas opostas que tornam possível o desfecho magistral do filme. Peter carrega uma frieza incompatível (na concepção de um macho alfa reprimido como Phil) com sua personalidade aparentemente fragilizada, o que culmina por sentenciar o cowboy.

O desfecho é repentino para o espectador que vê o longa uma única vez. A obra de Jane Campion é um deleite a cada revisitação, pois cada uma torna perceptível um novo detalhe que dá pistas do planejamento preciso de Peter. Que tipo de filho ou que tipo de homem seria Peter se não fosse capaz de salvar sua mãe? Jane Campion, doze anos após seu último filme, traz dilemas e reflexões sem qualquer intenção de respondê-los, e isso é o que torna sua obra tão primorosa. Sua intenção é subverter estereótipos de masculinidade, e contestar a masculinidade e tudo que ela representa socialmente. É desmontar couraças e trazer à tona as subjetividades que cada indivíduo carrega. Essa é sua força motriz.

A própria condução de um trabalho sobre masculinidades por uma mulher é uma subversão necessária ao cinema. Campion se tornou a primeira mulher, na história do Oscar, a ser indicada à categoria de direção uma segunda vez. Sua primeira indicação foi pelo igualmente soberbo O Piano, de 1993. A Academia levou quase trinta anos para reconhecer o trabalho de uma mulher na direção por uma segunda vez. Em que pese esteja arrastando prêmios por onde passe, ainda que Ataque dos Cães não dê a Campion as categorias principais (o que esta que vos escreve certamente repudiaria), sua marca histórica já se consolidou. É esse conjunto de fatores que certamente já estabeleceu Ataque dos Cães como obra prima da sétima arte, fazendo de Jane Campion uma das maiores diretoras da história.

Nota

Author

One thought on “Ataque dos Cães | 2021

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *