Flee | 2021
“É preciso dizer-lhe que tua casa é segura / que há força interior nas vigas do telhado/ e que atravessarás o pântano penetrante e etéreo / e que tens uma esteira / e que tua casa não é lugar de ficar/ mas de ter de onde se ir”. O poema “A Cabana”, do escritor paraense Max Martins, em muito se conecta com “Flee”, animação dinamarquesa dirigida por Jonas Rasmussen, produzida por famosos atores como Riz Ahmed (indicado ao Oscar de melhor ator em 2021) e Nikolaj Coster-Waldau (intérprete de Jaime Lannister em Game of Thrones), que contando uma história verdadeira (tendo os nomes dos personagens alterados), concorre aos Oscars de melhor animação, melhor documentário e melhor filme estrangeiro, sendo o primeiro da história da premiação a conseguir tal feito.
Em sua cena inicial, antes mesmo do surgimento do letreiro que anuncia o nome do longa, o diretor, pautando-se em cores como o cinza, o preto e o branco, nos traz que “a casa é lugar seguro. Lugar que você sabe que pode ficar e não precisa seguir em frente”. Casa, este local tão caro a quem foge, a quem imigra, a quem se refugia.
“Flee” aborda temas extremamente difíceis e complexos, mas sem jamais perder a ternura. Nele, Amin, como se em uma sessão de análise, conta a história de sua vida a um amigo dinamarquês, o que perpassa pela fuga dos conflitos no Afeganistão, turbulentos momentos na Rússia e estabelecimento definitivo na Dinamarca.
Passeando por memórias e recordações que trazem muita dor (sobretudo quando verbalizadas), o filme é construído a partir de alternâncias muito eficientes entre a animação e filmagens/materiais de arquivos, com a primeira se relacionando às experiências do protagonista e as segundas surgindo quando são feitas referências à relevantes acontecimentos históricos que se passam paralelamente à vida de Amin.
Nota-se que Jonas Rasmussen adota uma tática antiga, mas ainda assim bastante eficaz: ao retratar momentos felizes, o cineasta faz uso de cores vivas e alegres. Para retratar memórias carregadas de dor e sofrimento, recorre ao preto e branco e a tons escuros, transformando drasticamente o tom da animação que, nestes momentos, inunda-se de imagens borradas, personagens sem rostos e uma trilha sonora que traz um peso inafastável às cenas.
Entre estes momentos expostos a partir de imagens reais, tem-se a derrubada da Monarquia no Afeganistão e a perseguição de dissidentes políticos, que funcionam como explicação ao sumiço do pai de Amin, perseguido por ser considerado uma ameaça ao governo comunista.
É muito interessante como o filme traz uma imagem do país totalmente diferente da que se formou, principalmente, nas mentes dos nascidos na década de noventa em diante. Ao retratar a infância de Amin, há a representação de um país semelhante a algum da América do Sul ou da Europa, com crianças empinando pipas, trocando figurinhas, jogando vôlei nas ruas e vestindo trajes muito similares aos usados nos países ocidentais. É inegável que esta imagem do país em muito se distancia da que a mídia ocidental veiculava quando da guerra do Afeganistão, travada pelos Estados Unidos da América após os acontecimentos de onze de setembro.
Como forma de explicitar esta conexão com a cultura ocidental, no quarto de Amin estão afixados posters de filmes hollywoodianos, cujas estrelas eram Chuck Norris e Jean Claude Van Damme. Este último, especificamente, provocava fantasias no adolescente personagem, que confessa sua paixão juvenil pelo ator belga.
Em um dos momentos mais potentes da trama, o protagonista afirma que sempre soube que gostava de homens, sem saber o que isso significava. E não sabia porque “no Afeganistão os homossexuais não existiam. Não havia nem uma palavra para eles”. Aqui, impossível não fazer um paralelo com o clássico “1984” de George Orwell e sua novafala. Na fictícia Oceânia, mas também no real Afeganistão, a linguagem era usada para encerrar sentidos, limitar o campo do pensamento, despojar vocábulos de significados implícitos. Suprimindo palavras, visa-se suprimir pensamentos. Sem significantes para homossexualidade, sem homossexualidade, portanto.
Tem-se a linguagem mais uma vez sendo utilizada para (tentar) tergiversar acontecimentos concretos e (tentar) mascarar pulsões, com a restrição sexual e o moralismo possuindo nítido caráter político.
Neste momento, novamente imagens “reais” surgem na tela, trazendo militares, tanques de guerra e outras cenas que denotam as dificuldades em assumir a homossexualidade em um país cuja discriminação a este grupo impedia-os de viver livremente. Ainda que seja um assunto pesado de se tratar, a questão da sexualidade de Amin, propriamente, é exposta com muito enternecimento, apresentada de forma muito leve pelo protagonista ao falar de sua atração por Van Damme e, posteriormente, ao tratar da sua orientação sexual com sua família, o que foi recebido por seus familiares de forma empática e respeitosa.
O longa metragem também é muito eficiente enquanto forma de retratar (e por que não, também, ensinar?) momentos históricos muito relevantes, com alguns fatos se relacionando umbilicalmente à atual Guerra entre Rússia e Ucrânia, ainda que durante a produção, este conflito não tivesse escalado ao nível atual.
Em relação à pátria mãe de Amin, o filme retrata o recrutamento e a força de jovens para o serviço militar, em um cenário em que os ataques dos grupos Mujahideen aumentavam próximo da capital Cabul, os soviéticos se retiravam do país, cidadãos ianques fugiam e embaixadas de países ocidentais fechavam as portas.
Com a imagem de uma terra árida e tons escuros, uma voz feminina canta “meu país, você está com dor e não há cura”. A partir da adoção de um tom propriamente de documentário, expõe-se os conflitos internos ocorridos no Afeganistão, com vários grupos enfrentando-se em conflitos armados. Destaca-se aqui a intenção dos Mujahideen (Osama Bin Laden foi membro) de invadirem a capital afegã, utilizando armamentos fornecidos pelos Estados Unidos da América para combater os “não crentes”.
Estes momentos mais documentais, além de fornecer um riquíssimo panorama histórico que confere extraordinário valor ao filme, também são fundamentais na magistral construção da história do protagonista, que dada a violência dos conflitos no Afeganistão, foge do país, acompanhado de sua família para a Rússia, única nação que os aceitariam como turistas. Novamente, uma maravilhosa contextualização do espaço e do tempo é desenvolvida pelo diretor a partir de imagens e reportagens de televisão. Amin e sua família chegam na Rússia “um ano após o comunismo”. Neste momento da trama, mostra-se as dificuldades enfrentadas pelo país após o desmantelamento da União Soviética, sobretudo a galopante inflação, a dificuldade de se acessar bens materiais básicos e o alto grau de corrupção da polícia.
Todo esse sofrimento imposto aos russos é considerado, por alguns analistas, como a grande força motriz do atual conflito entre Rússia e Ucrânia, posto que se reputa haver um grande ressentimento por parte deles, uma vez que, após todo o poderio e protagonismo mundial da União Soviética, passaram por períodos extremamente difíceis que afetaram sua moral enquanto nação e povo. Assim, a guerra contra a Ucrânia também teria a função de mostrar força, resgatar a moral e mandar uma mensagem ao mundo de que o protagonismo russo estaria de volta.
No período em que a família de Amin refugiou-se na Rússia, temos os momentos mais fortes do filme. Entre eles, há a perseguição e discriminação da polícia russa aos refugiados, obrigados a recorrer ao pagamento de propinas para que não fossem denunciados e, principalmente, as cenas que envolvem os desumanos métodos utilizados por traficantes de pessoas para fazer com que os refugiados fugissem da Rússia e entrassem, ilegalmente, em outros países.
Em uma cena extremamente pesada, mostra-se como duas irmãs de Amin foram trancadas, por um destes traficantes, no interior de um contêiner dentro de um navio, junto de mais sessenta e duas pessoas. Em uma mudança drástica no traço da animação e nas suas cores, o filme evidencia e contagia o espectador, de forma muito competente, com a agonia e claustrofobia ínsitas àquele método de fuga.
Também é apresentada a forma que Amin e sua mãe tentam fugir da Rússia. Nesta tentativa, também intermediada por um traficante, fogem em um navio, sofrendo inúmeras intempéries em alto-mar, até o momento em que encontram o que parece ser um cruzeiro norueguês. Aquelas faces maltratadas pelo sofrimento parecem ter chegado ao paraíso, afinal, seriam resgatados e levados a um outro país. Enquanto pedem ajuda e comemoram emocionados o que parece ser a salvação, os tripulantes do cruzeiro fotografam refugiados como se estivessem em um zoológico. Tão longe, tão perto. Acreditavam no resgate até o momento em que são informados que o cruzeiro contactara a polícia.
Ao serem levados até a cidade de Harku na Estônia, os refugiados são presos e, sob vigilância de guardas e a “proteção” de arames farpados, são confinados em um prédio abandonado, sem estrutura para recebê-los. Crianças, adultos e idosos tratados sem nenhuma dignidade. Amin narra que jornalistas aparecem no local os filmando e explorando aquela desgraça para munir os programas de televisão. Aos presos daquele local insalubre, não é dito nada. Seis meses depois, lhe são dadas duas opções: ou permanecem sob aquelas degradantes circunstâncias ou retornam para a Rússia, tendo sido esta segunda opção a escolhida pelo protagonista e sua mãe.
Estas tristes memórias de Amin são intercaladas por cenas de sua vida adulta contemporânea ao momento em que faz seu testemunho para seu amigo, cenas estas que servem de bálsamo ao espectador colocado diante de várias passagens carregadas de sofrimento.
Naquela Dinamarca que lhe trata com dignidade e respeito, Amin tornou-se importante acadêmico e, com seu companheiro Kasper, enfrenta problemas ora comuns a todos os casais e problemas ora traspassados pela dor que carrega ao longo de sua vida. Essas são as partes de ternura, momentos de suavidade que, de forma importante, equilibram o peso com o restante da narrativa.
As tratativas com traficantes de pessoas e o percurso dos personagens para tentarem a vida em outro local são utilizadas para promover comoção ao espectador. São, pelo menos, três momentos em que a animação dedica um tempo considerável ao tratar destes acontecimentos, todos permeados pela dor e pelas incertezas, o que para um filme de apenas 89 minutos, pode ser um pouco exagerado: mostra-se a fuga das irmãs de Amin para a Suécia, posteriormente a fuga mal sucedida de Amin e sua mãe para finalmente expor a fuga apenas de Amin para a Dinamarca. Isso sem mencionar a constante referência a como tinha se dado a fuga de Abbas, irmão mais velho de Amin, para Suécia, o primeiro a se aventurar nestes caminhos e sair do Afeganistão.
Ora, o nome o filme em dinamarquês é “Flugt” que significa “Escapar”. Nada mais natural que o foco nestas viagens seja a tônica da animação. Todavia, parece que a exposição destes momentos de muita dor (como submeter-se a fugir do seu país trancado no interior de um contêiner fechado, andando escondido por uma floresta enevoada ou em um navio superlotado e em péssimas condições), é a opção mais simples para dotar o filme deste peso que ele inegavelmente possui.
Ao fazer essa opção, Jonas Rasmussen, sendo condescendente com seu país-natal, indica, implicitamente, que as dores de Amin que são decorrentes de sua condição de refugiado não se prolongam ao estabelecer-se na Dinamarca. Além de suas questões pessoais, oriundas das cicatrizes que ficaram de sua vivência, não são exploradas as dificuldades que Amin encontra no país nórdico, no que se refere a eventual tratamento discriminatório ou infortúnios outros, o que, além de centralizar demasiadamente os momentos de maior emoção nas cenas que, literalmente, trazem as fugas, não soa crível, sobretudo quando sabe-se que a Dinamarca possui uma política migratória muito restritiva, o que se comprova a partir de notícias como a decisão do governo dinamarquês de revogar as autorizações de residência de refugiados sírios e no ano passado, a promulgação de lei que permite o envio, para países de fora da Europa, daqueles que buscavam asilo na Dinamarca, em clara intenção de se evitar que refugiados/imigrantes se dirijam ao país.
A condição para a entrada e permanência de Amin no país escandinavo foi afirmar que toda a sua família estaria morta (o que era mentira). Assim, precisou ocultar de forma atroz toda a sua história pessoal e camuflar qualquer contato com seus familiares, escondendo os acontecimentos de sua vida até mesmo do seu companheiro, no que o protagonista afirma ter sido um processo muito solitário e doloroso, pois “não poderia ser ele próprio”.
O filme se encerra com uma profunda reflexão de Amin sobre como sua condição de refugiado moldou sua personalidade, como o fez crescer muito rapidamente e o fez demorar muito para realmente confiar nas pessoas. E ainda como o fato de fugir ainda criança do seu país o fez estar na defensiva permanentemente, mesmo que em um lugar seguro. Após uma viagem aos Estados Unidos, ao perceber que Kasper o espera no aeroporto, Amin chega a conclusão que algo deve mudar em sua vida: precisa abrir-se, precisa, intimamente, ressignificar suas dores, cicatrizar as feridas e viver de forma plena sua felicidade. Passados quatro meses desta reflexão, a última cena do longa nos apresenta a casa de Amin e Kasper, local que exala respeito, amor e afeto. Após passar pelo “pântano penetrante e etéreo”, Amin, enfim, chegou ao local “de onde ter de se ir”. Ele chegou na sua Cabana.