Retrato de Uma Jovem em Chamas | 2019
O que seria de nossa tão adoecida sociedade, não fosse construída e modelada meticulosamente pela figura masculina? Mais especificamente, qual viria a ser o papel social da mulher em tal construção não fosse a opressão que mantém firme e imutável o privilégio masculino branco, heterossexual e cisgênero? Num dado momento do longa de Céline Sciamma, passado na França do Século XVIII, a personagem Marianne (Noémie Merlant), pintora de profissão em seguimento à carreira do pai, esclarece à personagem Heloíse (Adèle Haenel) os motivos pelos quais não lhe é permitido retratar nus masculinos: “É sobretudo para nos impedir de fazer a grande arte. Sem noção da anatomia masculina toda gama dos grandes temas nos escapa”. Retrato de uma Jovem em Chamas é um presente de Céline Sciamma: feito por mulheres, sobre mulheres e para mulheres. É um alento e um breve respiro de paz num cinema tão predominantemente masculino e estruturalmente machista, rememorando mulheres a respeito de suas próprias forças, e acolhendo-as num lugar seguro cuja existência fomos educadas a esquecer.
Cada decisão de Sciamma, que assina a direção e o roteiro, é trabalhada para trazer representatividade feminina à tela.
De fato, não basta que o cinema ostente mulheres como protagonistas para que seja verdadeiramente representativo. O cinema pecou e muito ainda peca ao valer-se de tal fácil recurso para vender filmes ainda carregados de estereótipos. Na direção oposta, Sciamma revela mulheres que não dependem de figuras masculinas em nenhum aspecto de suas vidas. Não dependem do indivíduo masculino para se sentirem amadas, para satisfazerem-se sexualmente, para tomar decisões, enfrentar ou resolver dificuldades, ou para realização de qualquer ato que demande força física.
As mulheres retratadas no longa não dependem do homem para condução de suas jornadas. Pelo contrário e genialmente, homens na tela não há. Quando há, testemunhamos personagens invisíveis, sem rostos, mostradas apenas como objetos de cena, sem qualquer relevância à narrativa. Sciamma faz questão de limitar-nos aos seus dorsos, tirando-lhes a nitidez do semblante e face nos breves momentos em que se fazem presentes, não deixando dúvidas quanto à desimportância masculina para o desenvolvimento daquela trama.
Muito embora irrelevante, a figura masculina se mostra onipresente durante todo o longa. Contudo, sua onipresença está sempre relacionada à dor e opressão. Recordar o homem no contexto daquelas personagens é motivo de sofrimento, seja pelo casamento forçado a que Heloíse se destina, seja pela gravidez de Sophie (Luàna Bajrami), ou ainda em Marianne, cujo ofício de pintora lhe foi permitido não por seu incontestável talento, mas para continuidade do ofício paterno.
Retrato de uma Jovem em Chamas é dividido, basicamente, em duas partes importantes. A primeira, conta com a presença da mãe de Heloise, personagem que carrega as amarras e a dureza da submissão e do conformismo da opressão masculina, revelando-se como sua representante. A segunda parte se desenvolve na ausência do papel opressor representado pela figura materna.
É na dita segunda parte que o filme transparece sua riqueza em termos de representatividade feminina: expressa mulheres vivendo e convivendo sem a presença da figura opressora. Forma-se naturalmente um microcosmo social composto por três mulheres (Marianne, pintora, a Heloíse, a senhora da casa, e Sophie, a empregada), que pelo sistema opressor deveriam atender e obedecer a uma hierarquia (Marianne e Sophie estão ali para servir Heloise). Entretanto, o triunfo é a subversão: a vivência, a solidariedade, a fraternidade, a sororidade presente entre elas faz cair por terra toda e qualquer hierarquia imposta. São personagens femininas que se auxiliam mutuamente, que não rivalizam entre si, que se divertem juntas e que servem umas às outras em fraternidade e reforço de laços. Num mundo onde mulheres são criadas para ver em suas semelhantes rivais de beleza, rivais no amor, rivais na profissão (note-se, rivalidades todas existentes em prol do homem), trazer à tela mulheres solidárias entre si é extremamente significativo.
Fugindo de estereótipos, Sciamma não cria polêmicas em temas que geralmente o seriam. A relação de confiança e amor entre duas mulheres flui de forma natural, consequência do exercício de convivência e formação de laço afetivo, e principalmente, do exercício de observação mútuo. Há apenas o sentimento entre duas pessoas. As personagens não se questionam pelos sentimentos que possuem uma pela outra porque não há motivos para questionamento que não venham de fora. Entre elas há apenas entrega e confiança.
Aliás, o exercício da observação e formação de memória é tema recorrente durante todo o longa. O dever de Marianne é o de retratar Heloíse às escondidas, e para tanto, precisava absorver, pela observação e pelo olhar, cada detalhe físico de Heloíse. E há, pela troca de olhares, um exercício de descoberta entre as personagens, que se transforma num conhecimento mútuo profundo, e que não só evolui para o sentimento intenso e verdadeiro entre elas, como também dá suporte à memória que restará de um relacionamento impossível para seu tempo.
Ainda, sem jamais cair no clichê da problematização e da polêmica, naturaliza os corpos femininos sem objetificá-los ou desrespeitá-los. Nas sutilezas da direção, não torna controversa ou discutível a existência de pelos ou gordura naturalmente presentes nos corpos femininos ali representados.
Não traz polêmica, ainda, à decisão da personagem de Sophie a submeter-se a um aborto. Nenhuma das personagens questiona os seus motivos, mas oferecem-se em auxílio e solidariedade. Simplesmente sabem, como mulheres, o tamanho do sofrimento carregado por ela e o duro caminho a ser percorrido. Há a delicadeza, ainda, em não tornar fácil a decisão da personagem. Pelo contrário, através de uma das cenas mais marcantes de todo o longa (e quiçá, da história do cinema), faz questão de mostrar que se trata de uma escolha dolorosa, transparecendo com clareza a incerteza e confusão de Sophie, bem como as dores por ela sentidas em todas as suas formas, aliviadas somente pela rede de apoio feminina que lhe circunda – representação clara do potencial da solidariedade feminina.
Exalando significados em toda sua composição, o longa possibilita exame minucioso e discussão infinita de muitos de seus dizeres imagéticos. Possui camadas e camadas reflexivas. É fácil conceber, porém, que sua marca de acolhimento e de pertencimento esteja toda refletida na cena em que mulheres de idades diversas confraternizam no entorno de uma fogueira. O poder e a magnificência de tal cena é indescritível, e a emoção por ela causada é resultado de todo zelo dedicado por Sciamma à obra, e por que não, às mulheres a que se dirige. Trata-se do segundo dos três momentos em que há trilha sonora diegética, o entoar de uma canção por uma coletividade de mulheres, canção que cresce e engrandece como uma orquestra, na mesma medida em que consegue arrancar algumas lágrimas por sua beleza. Não sem propósito, a reunião de mulheres no entorno da fogueira remete ao conceito que carregamos, por herança social, da bruxaria. E justamente o temor da união e da convergência feminina e seu potencial de alcance é que tonificou a formação do estereótipo da bruxa e queimou mulheres, silenciando virtudes e talentos, extirpando o que poderia ter sido.
Toda forma de arte é elevada por Sciamma a ato de resistência feminina. A ausência de trilha sonora não diegética torna ainda mais preciosa a música quando é introduzida, reflexo claro da dificuldade de acesso das mulheres aos meios culturais à época. Quando presente, carrega potência, transborda energia e sentimentos, traz libertação.
Marianne, como pintora, é a personagem detentora de maior liberdade quando em comparação às demais. Pode escolher dizer não ao casamento em razão de seu ofício. Em oposição à Heloíse, Marianne tem acesso à cultura e à arte, é conhecedora de música e sabe representá-la, o que a colocaria num patamar intelectual superior à retratada. Heloíse, por outro lado, é conhecedora somente da realidade do convento e das formas de conhecimento e arte ali disponíveis, e ainda assim, detém patente sensibilidade para usar da arte como forma de resistência – na medida em que prefere o convento ao casamento pelo acesso à biblioteca e à música. Encontra, ainda, naquela reunião de mulheres que é o convento, um porto seguro: “A sensação de igualdade é agradável.”
De mais a mais, é possível notar que Marianne resiste ao mundo masculino através da pintura, mas mostra-se conformada com suas regras. Quando retrata Heloíse pela primeira vez, é confrontada pela retratada quanto à falta de vida refletida em sua imagem, acendendo em Marianne um questionamento quanto às regras e convenções a que está submetida inclusive no ato de pintar.
O longa é todo uma constituição de memória. A pintura do retrato em si possibilita a reprodução infinita da imagem, que fica e permanece, alheia a qualquer forma de morte. É, ainda, constituído por um imenso flashback de Marianne, a artista. E cada plano se mostra uma verdadeira obra de arte pintada em tela cinematográfica: os figurinos e cores remetem a pinceladas, as personagens e objetos são apostos e posicionados propositalmente para remeter à imagem imediata da pintura.
Seja pela arte de retratar pela pintura, seja pela referência constante à mitologia grega de Eurídice e Orfeu, Sciamma apresenta com sutileza a contenda memória versus experiência. No mito, Orfeu implora aos deuses da morte que sua amada Eurídice pudesse retornar ao mundo dos vivos, o que lhe foi permitido sob a condição de que não olhasse para ela até que chegassem à superfície terrena. Entretanto, Orfeu, movido pelo amor e pela ansiedade, vira-se. Olha. Faz Eurídice morrer pela segunda vez.
As personagens discutem se o amor realmente foi o motivador de Orfeu para que optasse por olhar a amada a tê-la. De fato, se realmente o retorno da amada trouxesse vida, a escolha de Orfeu mostrava-se um tanto quanto egoísta. Entretanto, considerando que Eurídice já se encontrava morta, e talvez fosse impossível que o amor dos dois fosse restituído a seu status quo ante, a escolha de Orfeu pode refletir a opção pela memória de Eurídice em detrimento da experiência com ela. Ao amor impossível vivenciado num curto e limitado espaço de tempo, como o das personagens, resta apenas a intensidade e a memória.
Quiçá a dolorosa conclusão do longa seja reflexo, outrossim, da mitologia grega. Marianne escolhe memorizar Heloíse porque a opção de experimentar a vida com ela não existe naquele contexto. Marianne não pôde tirar Heloise do mundo dos mortos.
Minha descoberta pessoal de Retrato de uma Jovem em Chamas acoplou-se a um período em que pude me afastar de um estado de inércia para retomar um processo de autoconhecimento, redescoberta e reflexões. Acendeu uma chama de redescoberta pessoal como mulher. Mulheres não são educadas para se autoconhecer. São constantemente lembradas de que seu “eu” jamais será suficiente. Nesse contexto, a obra de Sciamma é uma revolução maior, capaz de proporcionar pequenas revoluções individuais, na medida em que se opõe a tudo que fomos moldadas e criadas a ser em prol da manutenção de privilégios masculinos. Revoluções que precisam ser reforçadas, precisam ser ditas e celebradas. Obras como essa precisam ser vistas, democratizadas e aproveitadas como instrumento de resistência feminina. Nos forçam e nos recordam os motivos para resistir.
O ponto de partida também é o de conclusão. O que seria de nossa mazelada sociedade, não fosse construída e modelada meticulosamente pela figura masculina? Qual viria a ser o papel social da mulher em tal construção não fosse a opressão que mantém firme e imutável o privilégio masculino branco, heterossexual e cisgênero? A resposta é justamente o lugar seguro que o longa nos recorda existir – um lugar em que mulheres acolhem mulheres, um lugar de pertencimento, o tão temido lugar em que mulheres são fraternalmente unidas. Um lugar de necessária revolução.
Texto encantador e delicado como o filme. Embora desejasse às personagens que o tempo fosse mais generoso com o relacionamento delas, gostei muito do final por também ser delicado e não perder o laço com a realidade. Faz sentir que cada momento precisa ser vivido com presença, porque vai passar.