Rebeldes do Deus Neon | 1992

Rebeldes do Deus Neon | 1992

O primeiro longa-metragem do taiwanês Tsai Ming-Liang, lançado nos cinemas ianques vinte e três anos após sua estreia, pode ser descrito como um filme “sobre a vida”. Sua crueza em retratar o quotidiano de quatro jovens de Taipei, se aproxima de um cinema quase documental, com poucos diálogos, focado em uma juventude que, desiludida e sem grandes projetos pessoais, vive a vida que pode em meio à cidade grande (o Deus Neon do título) e tenta se divertir entre furtos, cigarros, motocicletas, luzes neon e água.

A água é de especial relevância no filme. A primeira cena já nos antecipa o barulho de uma tempestade antes de vermos Ah Tze e Ah Bing, dois jovens delinquentes, no interior de uma cabine telefônica, de onde furtam as moedas usadas para pagar as ligações. Os personagens parecem ter uma relação muito naturalizada com a água, não se incomodando com sua presença umidificante: andam debaixo da chuva sem guarda-chuvas ou se comportam com absoluta naturalidade ao perceberem o seu lar constantemente inundado por um problema no ralo.   

A displicência com que Ah Tze se comporta diante esse alagamento de seu próprio tugúrio, cuja água faz flutuar pelo apartamento baganas de cigarro e garrafas vazias, causa, quase que invariavelmente, imenso desconforto no espectador, mostrando a argúcia de Ming-Liang em criar um clima de inquietude em quem assiste ao mesmo tempo que evidencia o completo desencanto do jovem com aquela ordinária realidade. Chega até a ser difícil diferenciar o que causa mais estranheza: o cenário encharcado e sujo ou a impassividade do jovem diante dele. 

Em meio aos conflitos que vive com sua família, Hsiao-Kang (outro protagonista do filme), decide largar os estudos e, em um dos muitos momentos de ócio em sua casa, escuta sua mãe falar que uma sacerdotisa afirmara que ele seria a reencarnação do Deus Norcha/Nezha, um personagem mitológico que tinha problemas com o pai e que, ao conflitar com outras divindades, fez com que a China fosse condenada a sofrer com grandes chuvas, o que nos faz compreender a carga simbólica da água na trama, bem como o título original do filme (青少年哪吒) que em uma tradução livre e literal, significa “Nezha Adolescente”. 

Enquanto Ming-Liang nos mostra Ah Tze, Ah Bing e Ah Kuei desafiando uma Taipei iluminada, soturna e misteriosa e Hsiao-Kang, introspectivo, em conflito com seus pais, não há qualquer tipo de julgamento moral daquela juventude desiludida e rebelde exposta a circunstâncias desanimadoras e opressivas trazidas pela cidade grande.  O diretor não coloca seus personagens em moldes fixos, trazendo sempre o que há de mais humano em cada um. 

Neste aspecto, chamo atenção para as cenas em que os protagonistas apenas olham para o teto, jogam videogames, usam o banheiro ou fumam seus cigarros, trazendo à lume o quão ordinárias são aquelas vidas e, consequentemente, quão semelhantes são em relação à vida de quem assiste.  

As histórias paralelas de Ah Tze, Ah Kuei e Hsiao-Kang se entrecruzam quando, em uma banal briga de trânsito, Ah Tze quebra propositalmente o táxi do pai de Hsiao-Kang. A partir deste momento, o filme ganha outro tônus por tratar de uma certa obsessão do tímido Hsiao-Kang em relação a figura de Ah Tze, sempre acompanhado de seu fiel escudeiro e de uma linda garota. 

 O filme passa a focar nesta tarefa de observação contínua de Hsiao-Kang sem esclarecer ao espectador se o seu sentimento é de admiração por aquela vida destemida e cheia de aventuras ou de ódio em virtude de Ah Tze ter danificado o táxi do seu pai. O especial brilho do filme advém do fato de Miang-Ling fazer com que o laconismo e a impávida observação de Hsiao-Kang não nos adiantar nada acerca de suas reais intenções por um período significativo da trama. 

Em meio a uma trilha sonora que permanece na cabeça do espectador por dias e que possui total pertinência com as luzes neon que invadem Taipei, vários temas tipicamente adolescentes permeiam o filme como por exemplo: solidão, conflitos com os pais e timidez. Aqui destacarei uma cena relacionada com o tema da sexualidade.

 Após uma ida ao bar regada a bastante álcool, Ah Tze, Ah Bing e Ah Kuei curtem em suas motocicletas a brilhante Taipei noturna. A noite de excessos termina em um quarto de hotel e a imagem de uma mulher embriagada e vulnerável no meio de dois homens já remete à ideia de que algo muito violento está prestes a ocorrer. Na cena, percebe-se, com clareza, que o cometimento do estupro está presente na cabeça de Ah Bing, que, inclusive, inicia o ato de despir a garota. Contudo, Ah Tze não é conivente com as ilícitas intenções de seu amigo, interrompendo-o rispidamente e fazendo com que Ah Kuei durma aquela noite sozinha e em segurança. 

O roteiro, de forma assertiva, traz, na cena seguinte, a garota acordando atônita e ligando para Ah Tze com a intenção de indagá-lo se haviam a estuprado. A partir desta cena, em que o tema do estupro é tratado sem hesitação e em um contexto muito “convincente” enquanto correspondência da trama com a realidade dos jovens, pode-se realizar um paralelo entre Rebels of the Neon God e vários filmes americanos das décadas de 1980 e 1990 que retrataram esta “adolescência ávida por aventuras”, mas sem o cuidado que temas desta envergadura merecem e que, por isso, envelheceram muito mal por suas inadequadas abordagens de questões como machismo, racismo, violência sexual, etc. 

Enquanto filmes que viraram “clássicos de Sessões da Tarde” trouxeram a naturalização de um sem número de violências para toda uma geração de espectadores (destaco o filme Sixteen Candles de John Hughes e sua repugnante abordagem do estupro), o filme asiático parece ter envelhecido muito bem, graças a forma não idealizada  com que aborda esta juventude que apenas “quer curtir” (aqui os personagens também sofrem com dor de barriga, são multados no trânsito, assistem aulas de matemática e vomitam na rua após uma bebedeira) e, sobretudo, por não normalizar violências como o estupro.  

Permeado por inventivas rimas temáticas, como a marca do jeans de Hsiao-Kang coincidir com seu sobrenome (Lee) e o personagem amazônico Blanka sempre ser escolhido nos fliperamas daquela chuvosa Taipei, o filme, obedecendo o seu próprio tempo (o que não deve ser confundido com um roteiro pobre), contando com excelentes atuações e tratando com simplicidade e profundidade temas caros aos adolescentes do mundo inteiro, é uma joia do cinema asiático da década de 1990.

Author

  • Eduardo Gouveia

    O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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