Caché | 2005

Caché | 2005

Assista o trailer aqui.

Ao longo de sua carreira, o cineasta austríaco Michael Haneke construiu um grande estudo sobre a violência. Sua visão pessimista e a ideia de que o homem sempre será o lobo do próprio homem são notáveis desde seu primeiro longa-metragem (O Sétimo Continente, 1989) até o último (Happy End, 2017). Mas nem por isso é possível dizer que ele é um artista repetitivo ou de pouco repertório. Pelo contrário, Haneke é um dos grandes autores de seu tempo justamente por revelar as inúmeras facetas da crueldade humana. E ao fazê-lo, não é por mero grafismo, mas por uma profunda e sincera inquietação. Sua filmografia parece nascer de seu próprio sofrimento e da necessidade de perguntar “por que somos tão maus?”. O fato é que ele não nos dá respostas, ou ainda não as encontrou. Afinal, por que somos tão maus?

Aqui a pergunta permanece, mas de forma sutil. Faz sentido: se traduzirmos o título “Caché” para o português encontramos a palavra “escondido”. Diferente de suas versões quase idênticas do filme Violência Gratuita (1997 e 2007), que são sátiras explícitas da relação mídia/cinema-violência, o cineasta trata do predicado sem sujeito, da estrutura velada de uma violência silenciosa (e nem por isso menos cruel). Ao espectador desavisado que assiste o filme apenas intrigado por sua sinopse, a experiência pode ser frustrante. Uma família de classe média que recebe estranhas fitas de vídeo de sua própria casa é um bom pretexto para um suspense onde pode-se esperar muitas reviravoltas e surpresas. Mas isso só interessa para a construção de uma cilada narrativa e seria um desperdício parar a análise por aqui.

A casa “escondida” nos créditos iniciais (imagem reproduzida da internet)

Michael Haneke sabe das possibilidades da sétima arte, brinca com o gênero e com nosso julgamento. Talvez esperássemos uma extorsão, ou uma traição, ou então uma brincadeira do filho com os pais. Mas no final pouco importa. A crescente tensão daquele drama familiar nos leva a diversas pistas falsas colocadas ali exclusivamente para nossa manipulação. Somos feitos cúmplices do que se esconde por trás das aparências (e não só dos personagens, mas da sociedade em geral). Fazemos parte da crueldade pós-colonial que vai ganhando forma ao longo do filme. 

A primeira pista falsa é lançada logo nos créditos iniciais. Vemos a residência do casal principal, Georges e Anne, por um longo e imóvel plano. Quando a tela começa a “rebobinar” percebemos que víamos uma gravação. Então a trama já se estabelece: alguém filmou a fachada da casa e enviou uma fita VHS para eles. O vídeo não mostra nada, a não ser o movimento da rua e a entrada e saída dos moradores da casa. Nossos olhos são a própria câmera que filma a cena. Ao mesmo tempo que nos sentimos mal por olhar aquela intimidade, nosso voyeurismo floresce. Essa consciência que nos é dada como espectador participante da narrativa já havia sido vista na primeira versão de Violência Gratuita, quando um dos assassinos nos dá uma piscadela. Lá a ideia era nos levar ao riso com o jogo insano que os vilões fazem para depois nos sentirmos culpados com tudo que acontece; aqui é para nos colocar como videntes passivos de uma situação violenta muito mais comum, porém que permanecemos ignorando. Essa é nossa culpa e Haneke não tem escrúpulos para jogar em nossas caras o quanto fazemos parte dessa estrutura e nos mantemos calados.

A violência de Caché não é gritante, mas é mordaz. Não é a do colonizador que com armas invade a terra do vizinho, mas a do pós-colonialismo que estabelece uma estrutura de opressão que permanece camuflada em nossa sociedade; é a violência de uma identidade “europeizada”, branca, machista, heteronormativa, cristã, burguesa, etc. sendo imposta mundo à fora; de um intelectualismo vago como os livros falsos do cenário ridículo do programa de TV apresentado por Georges; da negação do olhar ao outro como alguém e da sua discriminação.

A memória que Georges guarda de Majid na infância (imagem reproduzida da internet)

A classe média esconde ou se faz desentendida. Basta vermos como Georges e sua mãe fizeram questão de subtrair de suas memórias as lembranças de Majid, a vítima do colonialismo. Não há espaço para o estrangeiro. O que restou para Georges foi a imagem aterrorizante de Majid criança segurando um machado e coberto de sangue indo em sua direção (obviamente não foi essa a cena real). Estamos justamente na visão do colonizador que vê o colonizado como violento. Haneke também tem a sutileza de colocar um certo desentendimento em diálogos banais, como quando Pierre, amigo da família, comenta de um roteiro escrito por amigo em comum de todos no jantar, mas parece não saber do que se trata quando em seguida é perguntado sobre a história, ou quando o chefe de Georges pergunta “que fita?”, mesmo sendo ele a pessoa que o convocou para falar justamente da fita. A todo momento essas relações precisam se manter na artificialidade para que não sejam vistas suas entranhas obscuras. Notamos alguma coisa escapando da jaula quando um ciclista quase atropela o casal saindo da delegacia, e Georges logo reage com truculência. O ciclista é negro e provavelmente um imigrante na França. É uma violência sendo desvelada por Haneke; é um raro momento em que o artifício se quebra. Lembre-se: somos as testemunhas caladas desse sistema (e da obra).

O pior momento do filme é quando nós, espectadores, percebemos nossos pré-julgamentos. Caímos em uma arapuca armada pelo diretor que nos fez classificar a Anne como traidora em certo momento, pois integramos uma estrutura machista. Ou quando olhamos o filho de Majid com desconfiança, já que vivemos em uma sociedade segregativa. Também somos culpados. Não é à toa que Haneke diz que seus filmes são para pessoas que gostam de ser torturados: eles são cruéis. Mas nós merecemos. 

Não há câmera (imagem reproduzida da internet)

Haneke faz questão de nos colocar como comparsas dessa narrativa camuflada. Não há câmera quando Georges interroga Majid pela primeira vez ou quando caminha para entrar em seu carro na direção onde a filmadora estaria, olha, mas não enxerga nada. Somos nós que vemos tudo acontecendo e permanecemos  inertes na frente da projeção, da mesma forma quando vemos o exercício da opressão pós-colonialista ao nosso redor. É claro que é incômodo ser invadido e ter seus privilégios escancarados. Mas é justamente isso que o cineasta quer. É ele quem envia os videotapes na porta da sua casa, se você for um dos que usufrui dessa estrutura opressora consciente ou inconscientemente.

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