FHC, o Presidente Improvável | 2022

FHC, o Presidente Improvável | 2022

FHC, o Presidente Improvável, dirigido por Belisario Franca, foi lançado no Brasil em 31 de março de 2022, data que habitualmente se relembra o golpe militar de 1964. A data, por certo, não é apenas coincidência. O filme apresenta Fernando Henrique Cardoso como um intelectual e político filiado ao campo democrático, seja para falar do tempo presente, seja na reconstrução da sua atuação contra o regime autoritário.

As escolhas de Franca para contar essa história são, no entanto, bastante convencionais, sendo a base do longa construída por conversas de Cardoso com diferentes convidados em um ambiente confortável, provavelmente a sala de estar da casa do ex-Presidente. Com isso, toda a narrativa é construída a partir dos diálogos, vez ou outra sendo acrescida de imagens ou vídeos de arquivo. A escolha conservadora da direção só não se mostra mais cansativa pois conta com convidados tão interessantes quanto diversos. Acompanhamos a interlocução do protagonista com colegas do mundo acadêmico no Brasil, como Boris e Sérgio Fausto e a cientista política Maria Hermínia Tavares. Participam também intelectuais internacionalmente reconhecidos como Manuel Castells e Alain Touraine, lideranças políticas como Bill Clinton e os ex-ministros Nelson Jobim e Raul Jungman, além do artista e também ex-ministro Gilberto Gil.

O amplo leque de ilustres convidados, contudo, é pouco explorado. Basicamente vemos pequenos trechos dos diálogos que quase sempre se resumem a tecer elogios a Cardoso ou fazer questões que convenientemente levarão o ex-Presidente a apresentar sua narrativa sobre determinados fatos. Nesse sentido, o filme, assim como o livro de título semelhante (O improvável Presidente) se prestam a um papel que parece bastante claro nos movimentos recentes de FHC: constituir ele próprio uma interpretação de sua obra acadêmica e política. Essa tarefa tem sido realizada em uma série de obras acadêmicas recentes do autor que vão desde Pensadores que inventaram o Brasil até os Diários da Presidência.

Há, portanto, um esforço deliberado de construir uma imagem positiva do Presidente e do Sociólogo justificando suas escolhas políticas e buscando alinhar sua produção intelectual aos maiores pensadores do país. No campo político, há o esforço de se aproximar de Campos Sales e Juscelino Kubitschek, o último não por acaso aparece na abertura e no encerramento do documentário. No campo intelectual, Rui Barbosa e Sérgio Buarque de Holanda aparecem como referências fundamentais do seu pensamento. Ao reconhecer esse esforço de Fernando Henrique nos últimos anos, e agora consolidado pelo documentário, não posso deixar de mencionar o livro que escrevi, FHC – do Sociólogo ao Presidente, em que justamente busco reconstruir a trajetória do sociólogo e do Presidente, ambas analisadas por uma perspectiva crítica que identifica na obra e na gestão a estruturação de um projeto neoliberal.

O intuito declarado de engrandecer o legado de Cardoso possui implicações políticas claras que podem ser percebidas desde as visões sobre o golpe de 1964 – entendido pela problemática ótica da equiparação do risco representado pela esquerda revolucionária e pelos militares protofascistas. Nesse sentido, ao assumir como fio narrativo a perspectiva de FHC, o documentário não deixa de reforçar um anticomunismo, ainda que disfarçado pela bandeira da “defesa da democracia”. As inúmeras instituições financeiras que patrocinaram a realização do documentário funcionam também como um sinal, desde o princípio, do sentido político que orienta a trama.

À discordância do recorte teórico-político adotado por Franca também se somam incômodos em relação às suas escolhas estilísticas. A adoção de uma trilha sonora que sugere a apresentação de algo grandioso pouco ou nada dialoga com a proposta de filmar intelectuais e políticos sentados em uma sala. A insistência nessa escolha sonora durante as quase duas horas de documentário se mostra um equívoco ainda maior, tendo como única consequência produzir um cansaço no espectador à espera de um fato grandioso que nunca chega.

Da mesma forma, o abuso no uso do plano detalhe demonstra mais a pouca criatividade da direção do que propriamente se mostra uma escolha capaz de gerar conexão do espectador com os personagens na telona. Além disso, o uso de elementos da linguagem cinematográfica para a construção de um personagem quase heroico não combina em nada com as boas vestimentas, o conforto da sala de estar e as conversas repletas de erudição e atravessadas por trechos falados em francês ou inglês.

Ao final, na tentativa de salvar todo o legado de Cardoso, o que se tem é um documentário de pouca densidade, ainda que repleto de importantes intelectuais e expoentes da República brasileira. A análise de suas obras aparece apenas de forma pontual (e de forma apenas elogiosa, mesmo quando fala de seu trabalho sobre os negros no Brasil, já há muito superado). A análise de sua vida pessoal é igualmente rasa: sabemos pouco de sua biografia a não ser noções vagas da origem familiar e de sua companheira, Ruth Cardoso. Nesse sentido, aliás, FHC, o Presidente Improvável segue por caminho radicalmente distinto daquele seguido em Lula, filho do Brasil. Se neste a narrativa se concentra na trajetória pessoal do sindicalista e não chega até o período na Presidência da República, naquele sabemos pouco de sua vida privada e o foco recai na construção da imagem positiva tanto do intelectual quanto do político.

Em meio ao turbilhão político vivido pelo Brasil e ao enfraquecimento do partido criado por Cardoso, o PSDB, o filme certamente é uma das suas últimas apostas para manter viva uma memória positiva do que foi o seu legado. O filme, contudo, não consegue dar profundidade a nenhum dos aspectos tematizados, sequer se preocupa em projetar lideranças do partido ou defender um caminho específico para o futuro. O que há é, sobretudo, o intuito egóico de exaltar pessoalmente a figura do ex-Presidente, justificar suas escolhas e minimizar suas contradições. Mesmo se analisado sob a ótica de seus interesses já nada louváveis, FHC, o Presidente Improvável não parece ter sido um filme bem sucedido em seus propósitos.

Nota

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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