Klondike: A Guerra na Ucrânia | 2022
A diretora Maryna Er Gorbach encerra seu filme dedicando-o às mulheres. Retratos sobre guerras, quando traduzidos para a sétima arte, não o fazem sob o ponto de vista feminino. A mulher não é, ou pelo menos, não costuma ser, a protagonista de tais temáticas. Não por acaso, o olhar sensível da diretora ucraniana nos traz Irka (Oxana Cherkashyna) como ponto focal, uma mulher grávida que vive na região de Donbas, zona rural fronteiriça com a Rússia, especificamente em julho de 2014. É justamente a ótica da diretora que torna Klondike: A Guerra na Ucrânia um exemplar duro da destruição imaterial e dos contrastes entre morte e vida provocados pelo conflito.
A guerra é como um monstro que se aproxima e toma conta do povoado antes que se perceba. A região de Donbas, integrante da chamada “Nova Rússia”, é alvo de disputa entre russos e ucranianos desde o fim da União Soviética. Parte da população ucraniana, separatista, de fato, identifica-se e/ou possui raízes russas, o que inevitavelmente gera conflito de identidade. O que hoje acompanhamos é fruto do arrastamento de uma guerra que não é nova.
A diretora temporalmente nos localiza nessa zona conflituosa em julho de 2014, quando um avião da Malaysia Airlines que fazia a rota Amsterdã – Kuala Lumpur foi abatido por um míssil, vitimando 298 pessoas. A guerra propriamente dita e o abatimento da aeronave são panos de fundo do longa por não serem diretamente abordados, mas trazem consequências reais para a família que nos é mostrada.
A destruição física causada por um bombardeio dá início à narrativa. A casa em que Irka reside com seu marido, Tolik (Sergey Shadrin), é parcialmente ceifada. Entretanto, mais do que o prejuízo físico – o perecimento de paredes e tijolos – a morte de planos e de vidas comuns que se preparam para a chegada de uma nova vida são mais caros à diretora.
Durante todo o longa, acompanhamos os esforços de Irka para, em que pese a aproximação real de uma guerra que parecia longínqua, manter sua rotina da forma que lhe parece possível. A ordenha de sua vaca Maya, a insistência na limpeza de uma casa sem paredes e seus móveis, a necessidade de consertar a TV e mexer no celular como forma de inebriar-se daquele horror, que está ali, mas que tenta ser superado pela resiliência da protagonista. Irka tenta ser maior do que a guerra. É significativo que sua preocupação imediata após o bombardeio seja o conserto do carrinho do bebê: “Eles bombardearam o carrinho. Onde vou colocar o bebê?”.
De forma sutil, desapressada e com poucas palavras, somos inseridos no posicionamento político daquela família. Tolik é colocado como um separatista que auxilia o exército russo em sua ocupação, e Irka notoriamente não compartilha das ideias políticas do marido. A crise identitária abrange, ainda, o irmão de Irka, Yarik (Oleg Shcherbina), que defende suas raízes ucranianas. Há, portanto, um conflito interno familiar sempre a ponto de estourar. Contudo, a resiliência de Irka e sua luta desesperada pela preservação de seu espaço procura deixar o embate em segundo plano. A mulher que traz vida em seu ventre coloca o marido e o irmão lado a lado, entre farpas, unidos na tentativa de reerguimento da casa, de manutenção do pouco que lhes pertence.
A guerra relativiza vidas. O ser humano, nesse contexto, é engolido num processo que o petrifica, o endurece, e o leva à desumanização. Outrossim, a guerra escancara e dá abertura ao machismo e à cultura do estupro. A cena do parto de Irka é extremamente simbólica no sentido de demonstrar essa podridão que ignora existências principalmente femininas.
O trabalho de imposição de contrastes de Er Gorbach é muito competente. A fotografia o tempo todo navega entre crepúsculos e interiores escuros. A direção de arte nos ambienta na destruição, que é contrastada com a vida que insiste em ali permanecer, a vida representada por Irka e seu ventre, pelos animais que ali circundam, pelo alimento ainda que escasso. Sua câmera é lenta no percorrer de ambientes, o que vem bem acompanhado de uma densa e perturbadora trilha sonora. Inexiste necessidade de carregar a fala dos personagens para evidenciar o horror ali instalado. Ele fala por si só. O choque já existe pela própria situação. O esforço aqui é oposto: num espaço e num tempo de morte e hostilidade, ainda há quem insista em viver.
Klondike: A Guerra na Ucrânia, que levou o Prêmio do Júri Ecumênico, no Festival de Berlim deste ano, e o Prêmio de Direção para Filmes Estrangeiros no Festival de Sundance, é distribuído no Brasil pela Pandora Filmes, e chegará aos cinemas brasileiros em 05 de maio de 2022.
Nada menos que fantástico esse texto!
<3