Corra! – o terror como instrumento antirracista

Corra! – o terror como instrumento antirracista

A sinopse de Corra!, clássico moderno de Jordan Peele, a princípio é bastante simples. Trata-se da narrativa dos fatos ocorridos com Chris (Daniel Kaluuya, indicado ao Oscar), um fotógrafo bem sucedido, que viaja com sua namorada Rose (Allison Williams) a fim de conhecer seus pais. A complexidade da trama, no entanto, reside nas características do casal: Chris é negro, e Rose, bem como sua família, branca. Nada importante se não retratasse uma sociedade podre que perpetua a opressão pela raça ao mesmo tempo em que finge não enxergar sua própria perversão interior.

Mais do que um filme sobre racismo, como frequentemente pode ser limitado, Peele nos presenteia com a proeza de refletir o drama do negro (não só americano, mas, no contexto do filme, principalmente) e seu tratamento pela sociedade branca através do gênero terror, o que possibilita que o espectador, mediante o exercício da empatia, sinta e visualize as situações absurdas a que são submetidas as pessoas negras ante a racista sociedade em que vivemos. Situações essas que a branquitude muito, mas muito provavelmente, jamais pensará em passar.

 A obra, de 2017, trouxe uma inovação que se mostrou bastante eficaz no retrato do tema, ao utilizar-se do gênero como forma de aproximar e chocar o espectador, trabalhando com sutilezas e situações rotineiras como meio de revelar ações que por vezes não são tidas como racistas. Muitas portas se abriram após a genialidade de Peele, vejamos as séries Them (Amazon Prime), Lovecraft Country (HBO), e o excelente filme britânico O que ficou para Trás (2020), para citar alguns exemplos.

Antes de iniciar a abordagem da obra propriamente dita, é digno de se enfatizar o fato de que, ao buscar críticas e resenhas sobre o longa nas grandes mídias e meios de comunicação, são raras as escritas por pessoas negras. Portanto, em que pesem todos os objetivos e demonstrações trazidos pelo filme, a população negra ainda é interpretada e avaliada com liberdade por pessoas brancas, que ocupam majoritariamente os espaços de julgamento. E tal, invariavelmente, conduz a uma interpretação, diga-se, fora do lugar, na medida em que a narrativa é vista como sendo mera construção ficcional.

Absurdos e ficção à parte, o filme não trata de situações de distante ocorrência. Muito pelo contrário. O longa, de forma escancarada, nos traz situações facilmente vivenciadas no dia-a-dia. Se você não foi vítima de uma delas, por certo, foi testemunha. E, neste aspecto, Corra! é um filme que incomoda porque denuncia como racistas (o conhecido e ao mesmo tempo negado racismo velado) atitudes que ou aparentemente não o são, ou que pretendem, pela população que se beneficia desta estratégia de opressão, ser entendidas com efeito contrário.

A atmosfera criada pelo diretor já deixa o telespectador amplamente desconfortável e com a impressão de que algo está fora de seus eixos, como toda produção do gênero. E numa introdução com referências no mínimo muito claras, coloca-nos a visualizar um homem negro, num bairro predominante e evidentemente branco e rico, sendo perseguido por um veículo (branco, referência nítida à ku klux klan). O perseguido, notando que está sendo seguido, mostra-se bastante temeroso, afirmando para si mesmo: “hoje não, hoje não”. Mesmo mudando de direção, é abordado e agredido por brancos, o que confirma seu temor.

A situação narrada pode ser vista como de absurda ocorrência por algumas pessoas. Entretanto, a situação inversa (um branco sendo perseguido por um negro), com certeza não o seria. Já se perguntou o motivo? Faça um exercício de empatia, se coloque na posição de ambas as pessoas retratadas e tente visualizar os motivos da linha seguida por seu pensamento.

Após o prólogo, vemos o protagonista demonstrar, ainda no início do longa, receio em conhecer os pais de sua namorada sem que estes tenham prévio conhecimento sobre sua cor. Rose, por sua vez, entende como irrelevante tal informação, justificando seu argumento (clássico) com a afirmativa de que os pais não são preconceituosos e que “inclusive, meu pai votaria em Obama pela terceira vez se fosse preciso”. Aqui, o primeiro indício do racismo velado aparece: a necessidade de justificar a ausência de racismo com escusas em outra relação tida com aquela raça ou cor. Ter apreço por determinada celebridade negra, ter amigos negros ou mesmo relacionar-se amorosamente com pessoas negras não faz desaparecer atitudes estruturalmente racista.

A confirmação de um fim de semana sombrio ocorre na própria viagem: o veículo, dirigido por Rose, atropela um cervo. Posteriormente ao atropelamento, ao serem abordados pela autoridade policial que passa no local, muito embora haja confirmação veemente de Rose de que era ela quem estava dirigindo o veículo, Chris é interpelado a apresentar sua identidade. 

As manifestações de racismo que são escancaradas por Peele são vistas durante todo o longa. O que pode soar sutil e ser facilmente negado, aqui é demonstrado como forte manifestação racista. O relacionamento entre Chris e Rose não é visto com seriedade por seus pais, que os questionam a quanto tempo eles mantinham aquela “coisa”, referindo-se ao namoro como algo fora do comum, algo despretensioso, ou, podemos interpretar, meramente dotado de intenções sexuais.

Aliás, a erotização do negro e sua objetificação sexual são bastante abordados. Seja por meio da usual, invasiva e absurdamente desconfortável pergunta sobre a suposta padronização dos membros íntimos dos negros do sexo masculino, seja pela necessidade de palpação da pessoa a fim de “sentir” seu potencial físico, é nítido que o pensamento de hipersexualização dos corpos negros prevalece. Aliás, o sexo parece ser a única justificativa plausível para a manutenção de um relacionamento sério entre uma pessoa de pele preta e uma pessoa não negra.

Fácil exercício de recordação: dificilmente não teremos presenciado alguma situação de “elogio” a uma pessoa negra de pele clara sendo referida como portadora da “cor do pecado”. Foi, inclusive, nome de novela no Brasil. O nível de erotização da pessoa negra e, principalmente, da mulher negra, é escancarado, mas o racismo presente em tais comparativos é constantemente negado.

Para dar relevância ao problema, o longa coloca um dos personagens negros da história, Andre Logan (interpretado por LaKeith Stanfield), como escravo sexual de uma senhora, nitidamente mais velha, branca e rica. Para possibilitá-lo, e aqui é que reside o aspecto alegórico do longa e a revelação do grande suspense da trama, negros são submetidos, pela família de Rose, a uma cirurgia neurológica que coloca a personalidade da pessoa operada em segundo plano, no plano da hipnotização, como se estivesse assistindo, ao longe, a realidade dos fatos que vivencia, e os molda conforme a necessidade. Trata-se de uma tradição familiar, mantida de geração em geração, em proteção à hegemonia branca.

A dimensão e arquitetura da residência dos pais de Rose, bem como sua localidade, refletem características de fazendas escravistas americanas. A família branca que preza pela tradição de manter empregados negros, utilizados por seus “patrões” a bel prazer. Ignora-se a personalidade do negro como pessoa, para colocá-lo como mero possibilitador das vontades daquele que o emprega. Como, de fato, no regime de escravidão. 

Como se descobre ao longo do projeto, a residência dos pais de Rose constitui um local conhecido pelo sumiço de pessoas negras, casos nunca solucionados pela polícia por falta de interesse. Não se trata, uma vez mais, de um fato de difícil palpabilidade. Os noticiários populares estão repletos de casos não solucionados de desaparecimento e assassinatos não esclarecidos de pessoas negras. Vide o já conhecidíssimo caso “Amarildo”. Vide Marielle. Trata-se de fato notório em que não há interesse algum das autoridades em solucioná-los. A justificativa, incomodando tal fato ou não, está na cor da pele e no pacto narcísico da branquitude, trazido por Cida Bento (renomada psicóloga e ativista brasileira) e que mostra como a branquitude se colabora para manter seu sistema de privilégios. E não é exaustivo que esses casos sejam rememorados. Tais acontecimentos são cíclicos e a mudança estrutural parece impossível.

O protagonista descobre, no clímax da projeção, que foi levado propositalmente à fazenda dos pais de sua namorada, fazendo ela mesma parte do esquema escravocrata de sua família. Num evento de pessoas brancas, descobre-se que o personagem foi leiloado a um senhor cego que conhece o trabalho de fotografia de Chris e o inveja. Quer seus olhos. Quer apropriar-se  das qualidades das pessoas negras. Desconsiderando a pessoa humana de Chris, se verá ele vítima de um procedimento neurológico para realização da transição da mente daquele que adquiriu seu corpo. E sua personalidade permanece, mas em um plano remoto da consciência, visualizando tudo que acontece, sem, porém, poder manifestar-se de qualquer forma.

Essa, inclusive, é uma das cenas mais marcantes dos projetos cinematográficos dos últimos anos. O mencionado evento é tratado quase como um funeral, numa atmosfera bizarra,  proporcionada pelas inúmeras limusines enfileiradas que conduzem os brancos participantes, retratando as diferenças pelos figurinos, pelos olhares dos figurantes e personagens secundários, todos observando com curiosidade o protagonista, e ressaltando, a cada questionamento, a cor de sua pele. Claro, com referências múltiplas à suposta simpatia por outras figuras negras. 

A abordagem do plano mental que aprisiona o personagem é propositalmente sufocante e claustrofóbica, sendo fantástica a capacidade do diretor em fazer com que o espectador sinta em sua pele o desespero do protagonista. É, de fato, angustiante. O absurdo, aqui, é encontrado no procedimento neurológico. Porém, trata-se de uma referência analógica nítida à escravidão propriamente dita e ao aprisionamento de corpos negros persistente no mundo pós-abolição (formal). Em ambos os casos, há prevalência da vontade do branco em detrimento da personalidade, das qualidades, das vontades e dos anseios da pessoa negra. 

A atração da empatia ante o sofrimento do protagonista é inevitável. Peele usa, em sua expressão artística, o absurdo ficcional e o terror como provocadores do choque, viabilizando o uso desse recurso como potente instrumento antirracista. Porém, importante se faz apontar (e provocar reflexão) no que se refere à proporção da empatia e a seletividade da indignação, quando há distinção estrutural socialmente imposta. O sofrimento de uma pessoa branca causa mais espanto, e portanto, gera maior empatia que o sofrimento de uma pessoa negra. Entretanto, por qual motivo o sofrimento de uma pessoa negra como Chris, homem, bem sucedido financeira e profissionalmente, causa maior indignação do que os martírios vivenciados por pessoas negras marginalizadas, pobres e periféricas? 

Não se busca, aqui, nem de longe, esgotar a conscientização racial e nem dissociá-la dos reflexos do racismo à estruturação de classes. O racismo em todas as suas concepções se faz presente independentemente da classe, e a ascensão social não isenta a pessoa negra de ser sua vítima. A empatia pode até acontecer e ser mais forte quando interseccionamos raça e classe. Entretanto, pessoas negras, ricas e pobres, estão sempre sujeitas ao racismo. A riqueza não apaga nem ameniza o racismo. A intenção aqui é limitar o debate à abordagem do racismo no cinema como instrumento antirracista e de conscientização racial, e analisar a recepção das expressões artísticas pelos espectadores.

 Nesse contexto, pode-se dizer que há, sim, distinção no dimensionamento de empatia nessas duas situações. Ambas são igualmente racistas, mas podem ser percebidas de forma distinta a depender da vítima. Um exemplo é a insistente “polêmica” que circunda o longa Faça a Coisa Certa, clássico de Spike Lee com fortíssima mensagem antirracista. Há quem (ainda) aponte o filme como racista ou não antirracista o suficiente. O diretor foi alvo de muitas críticas quando do lançamento do filme, no ano de 1989. O protagonista de Lee é um homem negro (interpretado pelo próprio diretor), que vive às margens na periferia de Nova Iorque, que luta para se manter em um trabalho. Há, por sinal, muitos negros desempregados e “desocupados” no longa, em razão ocupação dos espaços que lhes pertencem por imigrantes principalmente europeus.

Colocando as duas obras lado a lado, cabe a reflexão: a empatia é mais forte diante de qual dos protagonistas? A sensibilização do espectador pende para Chris, fotógrafo bem sucedido prestes a sofrer uma lobotomia, ou para Boogin Out, personagem do longa de Lee que vive na periferia, não trabalha, e que quer boicotar uma pizzaria de um imigrante italiano que o conhece desde criança por falta de representatividade negra no estabelecimento?  Logo percebe-se que Peele precisou elevar o patamar social de seu protagonista e utilizar-se do choque e do sofrimento extremo para aproximar o espectador, principalmente, branco. Os distintos pontos de vistas trazidos pelas duas obras apenas comprovam que, quando se fala em racismo estrutural, quando se aborda o racismo diário sofrido pelo negro periférico, a empatia enfraquece. Não há choque social. A invisibilidade é desejada pela estrutura. 

Reflexões lançadas, destaquemos, por fim, que a trilha sonora do longa acompanha a genialidade do roteiro, introduzindo, além dos elementos de gênero que propiciam ao espectador sentimentos como o medo e provocam tensão, traz o blues em sua origem e raiz, tal como cantado pelos negros escravizados, retrato presente em obras de narrativa histórica, nas plantações de algodão, elemento que, simbolicamente, vai salvar o protagonista da lobotomia.

Jordan Peele nos oferece, em sua condução, tendente, com absoluta certeza, a se tornar um clássico cult do terror, uma finalização inesquecível. No ápice da fuga do protagonista, quando o espectador acredita que, finalmente, haverá liberdade, vemos a aproximação de um carro de polícia. O sentimento, porém, não é de alívio, mas sim de absoluto horror pela inversão do seu papel de vítima. Trata-se de um imenso soco estomacal no espectador, que, se não percebeu os indícios sutis de racismo até então, e do sentimento do protagonista (e de toda pessoa negra) diante das situações a que foi submetido, pode, ao final, experimentar o “dilema” de ser negro em qualquer lugar do mundo. 

Nota:

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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