A Caixa de Pandora e a Moral Masculina

A Caixa de Pandora e a Moral Masculina

“[…]
Então ordenou ao ilustre Hefesto que o mais rápido possível misturasse terra com água e ali infundisse fala e força humanas, e que moldasse, de face semelhante à das deusas imortais, uma forma bela e amável de donzela;

[…]

Que nela colocasse uma mente desavergonhada e um caráter fingido, ordenou a Hermes mensageiro, o matador do monstro Argos.

[…]

Então, o mensageiro matador de Argos fez em seu peito mentiras, palavras sedutoras e um caráter fingido, por vontade de Zeus que grave troveja; assim o arauto dos deuses nela colocou linguagem, e chamou essa mulher Pandora, porque todos os que têm moradas olímpias deram essa dádiva, desgraça para os homens que vivem de pão.

[…]”

O Trabalho e os Dias, de Hesíodo

Na Mitologia Grega, Pandora seria a primeira mulher a habitar a Terra. Sua origem se dá a partir do ato vingativo de Zeus, rei dos deuses, contra Prometeu, titã criador dos homens, juntamente com seu irmão Epimeteu. Teria ele roubado o fogo do Monte Olimpo para agraciar sua criação que ainda era muito frágil na natureza. Ao perceber a trapaça, Zeus manda que os olímpicos confeccionem Pandora. Seu nome significa “todos os dons”, visto que membros do Olimpo lhe acrescentaram os dons para criar um ser que seria o “belo mal”. Presenteando Epimeteu, o menos precavido dos irmãos, Zeus coloca em prática seu plano com o casamento da bela moça e o titã. A primeira mulher, astuta e curiosa, foi quem abriu a caixa proibida que continha todos os males, estabelecendo, então, a condição humana na terra: o trabalho. Desde então vivemos acometidos de doenças e relegados ao labor, fomos separados dos imortais e lançados à nossa própria sorte.

Essa narrativa só é evocada uma única vez no filme do cineasta alemão Georg Wilhelm Pabst: a cena em que Lulu (a icônica Louise Brooks) está sendo julgada (por homens) pelo assassinato de seu marido, Dr. Schön. É o acusador que faz a comparação de Lulu com Pandora, quando afirma ser ela a origem de todo o mal na vida do morto. O julgamento moral de Lulu nunca vem do diretor e das imagens que coloca em tela, mas sempre dos personagens que a rodeiam. Ela não é a maldade e nem sua disseminadora aos olhos de Pabst, mas sua inocência e autenticidade aparecem sempre como afronta ao moralismo daquela sociedade, apenas desvelando o mal já presente nos homens.

O germe do mal foi tema recorrente no cinema alemão da época, basta lembrarmos do reconhecido Expressionismo Alemão. Pabst talvez seja um dos cineastas mais injustiçados de seu tempo, principalmente se o compararmos com F. W. Murnau e Fritz Lang. Estes ganharam notoriedade no movimento expressionista e também fora dele, inclusive com sucessos longe da Alemanha. Já Pabst optou por se distanciar e fazer filmes que, por mais que comunguem do mesmo tema, operam de forma diferente: a chamada Nova Objetividade. Não havia o exagero das interpretações e cenários, mas a inquietação sobre o momento conservador e o que isso escondia estava presente na sua obra. Outro fator que relegou o diretor a segundo plano foi seu conluio com o Ministério da Propagando no regime nazista, tendo feito alguns filmes a pedido de Goebbles. É estranho e contraditório pensar que o mesmo cineasta que produziu Diário de Uma Garota Perdida e A Caixa de Pandora tenha de alguma forma colaborado com o nazismo.

A tendência conservadora e o advento do nazismo traziam consigo uma dualidade: de um lado o que se chamaria de libertinagem (movimentos libertários), de outro o [falso] moralismo. O país devastado pela Primeira Grande Guerra é berço para um ideal reacionário que pretendia ordenar o caos social pela doutrinação moral. Alguns se levantaram da multidão como grandes profetas da lei e da ordem e, assustadoramente, foram abraçados e idolatrados. A caixa de Pandora estava prestes a ser aberta. É claro que a Arte pressentiu e expressou esse sentimento de aflição. Pabst transpõe isso na figura de uma mulher que, diferente da mitologia e de sua época, é o movimento da ética autêntica contra a prescrição de uma sociedade masculina. Lulu é uma subjetividade livre; o mundo é quem a coloca à margem.

Louise Brooks trabalhou em dois filmes de G. W. Pabst lançados em 1929: Diário de Uma Garota Perdida e A Caixa de Pandora. Poderíamos classificá-los como uma duologia, pois as obras conversam em diversos momentos. Além da atuação principal, há uma mensagem humanista comum. No primeiro Brooks interpreta Thymian, uma jovem que é expulsa da família quando engravida e se recusa a casar com o pai da criança. Ela é colocada em um internato cristão para meninas (instituição plenamente moralista), mas foge e acaba parando em um prostíbulo (subjugada pelos homens). O simples fato de recusar um casamento por não amar o rapaz a empurra para a marginalização social. A atriz cria uma personagem que traz no olhar sua docilidade e inocência. Novamente é o mundo que rompe com sua autenticidade.

No segundo filme, Brooks tem o mesmo visual, mas a diferença é gritante. A atuação em A Caixa de Pandora marca sua carreira e talvez o estereótipo que segue (e com certeza a seguiu também) muitas mulheres no Cinema. Lulu é sedutora, mas não apenas por sua beleza física. Seus gestos e seu olhar flertam quando ela o quer. Logo na primeira cena ela usa seu charme contra o cobrador que está em seu apartamento. Entretanto, esse é um dos poucos movimentos de sedução deliberados por Lulu. No mais, ela atrai os olhares de uma outra forma, inconscientemente. Sua liberdade chama atenção. Na sequência da cena conhecemos Dr. Schön, amante de Lulu. Ele é um aristocrata da imprensa que vai até ela para terminar o relacionamento, visto que se casaria com a filha de um ministro. Aos olhos dele, Lulu não seria uma mulher para casar, já que não corresponde a imagem que se deveria ter da esposa. Não é permitido uma mulher tão livre.

Outro elemento comparativo entre os dois filmes são as insinuações que o diretor alemão sugere. No primeiro há uma cena de estupro; no segundo o pai de Lulu, Schigolch, pode ter sido também seu cafetão. Pabst levanta questões muito além de seu tempo. Em A Caixa de Pandora, por exemplo, há uma das primeiras personagens lésbicas da história do Cinema, Condessa Geschwitz. Se nos atentarmos apenas para este filme, que é o que nos interessa aqui, veremos que a jornada de Lulu é justamente uma batalha contra os valores de seu tempo. O desenho de seu figurino e o clássico corte de cabelo se destacam entre as personagens, influenciando as próximas gerações de atrizes. Uma referência evidente é a personagem de Liza Minnelli em Cabaret (1972), musical de Bob Fosse.

De fato, filmar o mundo underground e a crueza de sua realidade são temas que viriam a aparecer com mais popularidade no Realismo Italiano e suas vertentes, mas, ainda assim, distantes do protagonismo feminino. Lulu é quem move o filme, ou melhor, é movida para lugares e condições que não seriam suas. Quando Dr. Schön é flagrado pela noiva aos beijos com Lulu e o casamento se rompe, ele diz para seu filho Aiwa: “casar-se com Lulu será minha morte”. Schön e Lulu se casam, como se não houvesse mais opções para ele depois do flagrante. O que seria sua morte metafórica, sua imagem sendo manchada perante seu vínculo social aristocrata, se torna a morte real. Mas a causadora não é Lulu! O conservadorismo e a moral que a todo tempo se impõem sobre ela são as culpadas. O marido não pôde suportar que a esposa estivesse no quarto sozinha com outros dois homens: seu pai e seu amigo Rodrigo Quast, que a levara ao showbusiness. É quando, com arma em punhos, que Schön diz a Lulu para que atire em si mesma, pois ele não quer ter sua imagem manchada por um homicídio. O contato que ele tinha com “esse tipo de gente” das margens só era feito sob os panos. Um único momento em que ele julga fugir de sua moralidade e desvelar a personalidade de Lulu para os convidados da festa, é motivo para matá-la. Em um ato de legítima defesa, ela dispara e mata seu marido.

Acusada de homicídio, Lulu é levada a julgamento. A cena já foi citada aqui, mas vale dedicarmos uma atenção maior a ela. Como dito, é nesse ato que ela é comparada a Pandora da mitologia grega. Quem faz a comparação é seu acusador. No banco dos réus, Lulu usa um véu que a cobre dos olhares do povo. Mas logo vemos que a maioria dos espectadores são mulheres e não estão ali para julgá-la. O que acontece é uma comoção de apoio à Lulu. Mais uma vez: é nesse momento em que ela é taxada como a origem dos males sobre Schön (ou sobre todos os homens, como no mito). Condessa Geschwitz, que está presente, tem uma das falas mais instigantes do filme: ela interpela o promotor a pensar se fosse sua esposa quem tivesse sido criada nos cafés baratos da cidade. Por que Lulu é culpada? Por ser livre? Por não se deixar encaixar na moralidade vigente? Às pessoas assim será sempre relegado o isolamento?

Ficam no ar algumas questões sobre a vida de Lulu e o que a levou até esse ponto. Será mesmo que ela é uma prostituta? Seu pai foi o primeiro a lhe vender e depois a abandonou? Não nos dar essas respostas é mais uma prova de que Pabst não quer justificar sua subversão. Ela é inocente! Ela só é subversiva porque a sociedade a vê assim. Aqueles que entendem e se compadecem de Lulu são os que ajudam em sua fuga do tribunal. Ingênua, Lulu foge e retorna para o lugar do “crime”. Aiwa, que já havia deposto em favor dela, fica surpreso por vê-la na casa e à vontade na banheira. Ela ri de sua reação e diz: “onde mais iria, senão para casa?”. Mas isso não o impede de dar sequência na fuga. Os dois pegam um trem e logo ganham a companhia de Rodrigo Quast e Schigolch. Os motivos para estes últimos acompanharem a escapada ainda é obscuro, visto que o interesse maior é a possibilidade de se aproveitarem de Lulu. Já Aiwa é movido por um ato de amor.

No trem entra em cena mais um personagem masculino com intenções maldosas com Lulu: é o Marquês Casti-Piani. Ele quem desvia o destino dos fugitivos para viverem em uma espécie de hotel embarcado, ou, então, entregaria o paradeiro de Lulu à polícia. É nesse ato que a decadência de todos começa a ficar mais explícita e a interpretação de Brooks se mostra ainda mais admirável. Os close-ups que Pabst coloca sobre ela revelam um rosto diferente, agora marcado pelo cansaço e preocupação. No barco funciona um cassino onde Aiwa tenta a sorte para conseguirem se manter. Geschwitz também entra em cena e chega no hotel à procura de sua amada Lulu. O rosto de Geschwitz entre todos aqueles homens é como um alento para Lulu, que logo a faz sua confidente. Entregue àquele ambiente caótico e opressor, a Pandora inocente lamenta ao pai: “todos querem dinheiro”. É um dos poucos momentos de um afago paterno à protagonista. Casti-Piani diz que para arcar com os cuidados de Lulu precisa vendê-la a um egípcio e Quast exige vinte mil francos para montar um novo espetáculo. Seria Lulu a real causa dos males? Todos eles vêm do homem.

Quase que imediatamente a Condessa se dispõe a ajudar, mas isso demanda um ato de resistência de sua parte. O plano orquestrado por Schigolch tem, mais uma vez, um “objeto” feminino: Quast deve acreditar que Geschwitz é uma presa fácil para que saiam da desgraça. Ela aceita seduzir o brutamontes, assumindo uma sexualidade que não é sua, para salvar Lulu. Mas, o que parecia ser a salvação se reverte em um caos ainda maior. Aiwa é pego trapaceando no baralho e é expulso do barco. O interessante é, novamente, o dilema moral que Pabst coloca sutilmente em cena. Enquanto gritam pela polícia, os tripulantes que estavam em volta da mesa de jogatina aproveitam a bagunça para encherem os bolsos.

Lulu, seu pai e Aiwa conseguem entrar em uma pequena embarcação e fogem dali. Condessa Geschwitz é cruelmente deixada para trás e, reagindo ao abuso de Quast, repete o ato de Lulu para fugir da opressão masculina: o mata. É a distração para a polícia enquanto os outros saem daquela confusão. Entramos no último ato do filme que se passa nas ruas nebulosas de Londres. O trabalho de luz e sombra se torna ainda mais primoroso nessas sequências finais. Da penumbra surge um personagem enigmático, mas que nos é apresentado como alguém resistindo a algo terrível dentro de si. Quando abordado por uma caridosa moça em um evento natalino ele diz: “ninguém pode me ajudar”. 

Após esse prelúdio do ato, vemos, então, o quanto a vida do trio fugitivo está em ruínas. Lulu tenta cobrir um enorme buraco no teto para evitar que o frio e a chuva entrem. Aiwa está em um estado de inércia sob uma fina coberta na cama. Schigolch bebe conhaque para espantar a friagem (“estranho que se pode comprar bebida a crédito, mas não o pão”). Nem a lamparina tem querosene o suficiente para iluminá-los. O pão é quase uma pedra. Então, Lulu resolve dar uma solução ao sofrimento.

Pela primeira vez temos certeza da prostituição de Lulu: ela sai decidida a vender-se por uns trocados. Aiwa tenta impedir, mas não reluta quando Schigolch ironicamente o segura e diz o quanto queria comer um pudim pela última vez antes da morte. O desespero faz com que ela ignore os perigos da noite e o aviso de que havia um assassino de mulheres solto pelas ruas. É justamente quem cruza com ela em uma esquina. O personagem, creditado como o famoso Jack, o estripador, é o mesmo rapaz que abrira o ato e ainda perambulava por ali. O trágico destino de Lulu começa a saltar sob nossos olhos. Ela o convence a ir até o lugar onde morava, mesmo Jack afirmando não ter dinheiro para pagá-la. Mas ela tinha gostado dele e, em toda sua inocência, insistia pelo encontro. Eis uma das cenas finais mais tristes e cruéis da história do Cinema.

“Há Lulu, a lâmpada, a faca de pão, Jack, o estripador: pessoas supostamente reais, com caracteres individuados e papéis sociais, objetos com seus usos, conexões reais entre esses objetos e essas pessoas – em suma, todo um estado de coisas atual. Mas há também o brilhante da luz sobre a faca, o cortante da faca sob a luz, o terror, a resignação de Jack, o enternecimento de Lulu. […]”

Gilles Deleuze em seu livro Cinema: Imagem-Movimento

A citação de Deleuze sobre o final do filme mostra a genialidade com que Pabst o monta. Cresce aos poucos a tensão e presenciamos, sem nenhum tipo de efeito especial, o mal que surge dentro daquele homem. Terminamos a projeção com a evidência de que a maldade não está nunca em Lulu, mas ao seu redor. Ela chega a redimir o maníaco, que larga sua arma, mas cada imagem seguinte potencializa o monstro preso dentro de si. O lampião que já estava fraco começa a piscar e chama a atenção de Jack para a faca na mesa. Lulu é morta. Uma pulsão assassina. É como se a luta contra o mal estivesse fraquejando e a escuridão tomasse vez. Do lado de fora passa uma comitiva que festeja o Natal enquanto Aiwa é deixado sozinho, caminhando na neblina. Foi esse todo o dilema do filme. De um lado a jovem e autêntica Lulu querendo a vida; de outro a moral masculina que a priva e relega uma imagem marginal. Pabst não encerra a obra punindo Lulu por sua subversão, mas parece dar um alerta ao espectador para que estejamos atentos aos valores que nos constituem. Afinal, qual é o peso da moral sobre nossas vidas? Será que não somos o mesmo olhar julgador que caiu sobre Lulu?

Nota

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