Pensando gênero em “O Bebê de Rosemary”

Pensando gênero em “O Bebê de Rosemary”

O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby), dirigido por Roman Polanski, é, sem dúvida, um dos grandes clássicos do cinema estadunidense. Lançado em 1968, o filme se insere no movimento que ficou conhecido como “Nova Hollywood” e que propunha romper com uma série de padrões estéticos e temáticos predominantes até então. Seu impacto foi enorme e mesmo filmes da mesma época e que vieram a se tornar clássicos, como O Exorcista (1973), dirigido por William Friedkin, são tributários desta importante obra. Voltar a ele décadas mais tarde nos permite refletir um pouco sobre o papel do terror para pensar sobre vários temas, inclusive a questão de gênero.

Justamente por ter se tornado uma referência importante para os filmes de terror que vieram nos anos seguintes, vários aspectos da obra passaram a ser incorporados e se transformaram em uma espécie de clichê do gênero. O principal deles, sem dúvida, é o próprio eixo central do longa: o satanismo, tema até então proibido nas telonas. Nas décadas seguintes uma série de outras obras exploraram essa temática de tal modo que se tornou uma espécie de lugar-comum dos filmes de terror.

A inquietação gerada pelo longa pode ser identificada nas inúmeras “histórias assombradas” que atravessam os bastidores da produção e tantas outras que, mesmo sem relação direta, acabavam alimentando a especulação de uma maldição sobre os participantes. Essas narrativas envolveram a morte de pessoas envolvidas nas filmagens, o trágico assassinato de Sharon Tate, então mulher de Polanski, no ano seguinte (1969) e até mesmo o homicídio de John Lennon que ocorreria anos mais tarde no mesmo edifício retratado no filme. Não são poucas as histórias que acabaram sendo relacionadas ao longa e que denunciam o caráter transgressor da temática para a época.

Para além do necessário esforço de compreender a obra em seu tempo, há vários outros aspectos de O Bebê de Rosemary, contudo, que seguem bem atuais. A condução cuidadosa que recusa o uso de elementos exageradamente macabros, bem como a adoção de uma trilha sonora tão assustadora quanto sutil, são aspectos que caracterizam uma direção impecável de Polanski. Essa condução, aliás, mesmo com a limitação de recursos disponíveis é capaz de criar um ambiente assustador de modo bem mais eficiente que a grande maioria dos filmes produzidos nos últimos anos.

A construção de um terror psicológico, que leva o espectador a criar uma relação ambígua com os personagens, certamente é um dos traços que tornam atual a obra de Polanski. A confusão entre realidade e sonho, loucura e maldição, são certamente alguns dos muitos aspectos que permitem que o terror produza reflexão social. Essa temática vem sendo muito explorada por diversos filmes do gênero. Um dos melhores exemplos nesse sentido certamente é Corra! (Get Out). Dirigido por Jordan Peele, o filme explora bem o terror para levar o espectador a compreender o horror do racismo. Natália Bocanera escreveu sobre isso para o Coletivo Crítico e você pode ler aqui. Outros filmes recentes também produziram reflexão nesse sentido como A Bruxa (2015), Nós (2019), Midsommar (2019), O que ficou pra trás (2020).

Nesse sentido, O Bebê de Rosemary é um filme bastante atual e é capaz de apresentar por meio do terror um conjunto de dramas vivenciados e hoje amplamente denunciados pelas mulheres. Por meio da relação entre Rosemary (Mia Farrow) e seu marido, Guy Woodhouse (John Cassavetes), acompanhamos não só uma história sobre satanismo, mas também sobre uma série de tentativas de controle sobre a mulher. Durante todo o longa, mas muito especialmente a partir da gravidez, percebemos como diversos personagens se sentem no direito de exercer a dominação do corpo feminino. Além disso, tão ou mais aterrorizante que a própria maldição e a tentativa de roubo do bebê é a sua concepção a partir do que hoje reconhecemos como estupro marital.

Esses episódios estão fortemente presentes no cinema da época e, via de regra, reproduziam uma narrativa com os dois pés fincados no patriarcado. Polanski, porém, consegue fazer com que acompanhemos essa invasão ao corpo feminino a partir da perspectiva da própria Rosemary. Nesse sentido, somos levados todo o tempo a ter empatia pela protagonista. O tratamento como “louca” dado pelo marido, pelos próprios médicos e, de resto, por quase todos os demais personagens, produzem profunda indignação. A presença de algo estranho nos soa tão óbvia que resta a indignação: como ninguém foi capaz de ouvi-la?!

A manipulação psicológica, hoje amplamente conhecida pela expressão gaslighting, está também presente em O Bebê de Rosemary. Pouco importa que a personagem estivesse relatando dores profundas e até mesmo passando pela experiência terrivelmente assustadora de perder peso durante a gravidez. Quase ninguém foi capaz de escutá-la e levá-la a sério. Em parte, é certo, a recusa se explica pelas intenções satanistas. Mas mesmo o médico, em tese isento das intenções nefastas, quando se vê diante do pedido de socorro da mulher prefere tratá-la como louca e recorrer ao seu marido. As únicas pessoas capazes de solidarizar e tentar ajudar Rosemary foram suas amigas. Aqui certamente o espectador atento aos debates atuais será capaz de identificar um claro exemplo de sororidade e empatia com a personagem principal. 

Se o desenrolar da história não cria condições para que o desfecho seja outro, ao menos vemos ao longo da trama a luta de Rosemary e, antes dela, o suicídio de Terry (Victoria Vetri) como forma de resistência à maldição que certamente tentavam lhe impor. Ao final, a revelação do plano maligno arquitetado pelos vizinhos Minnie e Roman Castevet (Ruth Gordon e Ralph Bellamy), não deixam qualquer margem para que efetivamente Rosemary pudesse ser interpretada como louca. Esse parece ser um aspecto importante que nos permite afirmar que o filme, diferente do que seria esperado, segue conseguindo contribuir com alguma atualidade mesmo em temas cujo debate passou por intenso aprofundamento ao longo das últimas décadas.

Se a influência mais imediata de O Bebê de Rosemary foi a construção de uma narrativa satânica, hoje já excessivamente explorada, a perspectiva de um terror psicológico que consegue dialogar com temas sociais presentes no debate público talvez possa ser uma das influências tardias do longa. Vale a pena vê-lo mais de cinquenta anos depois com essa perspectiva.

Nota

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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One thought on “Pensando gênero em “O Bebê de Rosemary”

  1. incrível análise e uma perspectiva interessantíssima sobre esta obra, gostaria de sua opinião sobre o final.

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