A Mosca | O Despertencimento do Corpo

A Mosca | O Despertencimento do Corpo

“Tenha medo. Tenha muito medo”

Ao contrário de Gregor Samsa – o homem-barata de A Metamorfose,  novela publicada em 1915 por Franz Kafka – que se transmuta logo no começo da narrativa, o cientista Seth Brundle, interpretado por Jeff Goldblum, sofre uma lenta e dolorosa mutação em A Mosca. Filme escrito e dirigido por David Cronenberg em 1986, é uma refilmagem de A Mosca da Cabeça Branca, de 1958, filme B dirigido pelo cineasta alemão Kurt Neumann e estrelado por Vincent Price, um ícone dos filmes de horror das décadas de 60 e 70.

No longa de Cronenberg, acompanhamos a jornada de Seth em um experimento que ele considera muito promissor e revolucionário: o teletransporte. O cientista já se encontrava com estudos avançados em transportar objetos de uma cabine a outra com sucesso, mas seu real objetivo era mais ambicioso; fazer o teletransporte de seres humanos, projeto ainda em fase de testes iniciais. 

Seth recebe a visita da jornalista Veronica Quaife, interpretada por Geena Davis, em seu laboratório. Ele acaba revelando mais do que gostaria a Veronica, que grava a conversa entre eles e pensa em expor tudo em uma reportagem para o jornal em que trabalha e tem como editor seu ex-namorado obsessivo, Stathis, interpretado por John Getz.  Seth se desespera, pois teme ser repreendido e perseguido pela comunidade científica, mas por fim consegue convencê-la de que algo muito maior está por vir e que valeria a pena esperar e acompanhar a evolução de seus experimentos com seres vivos. Veronica se interessa ainda mais e concorda em fazer uma cobertura exclusiva do dia a dia da evolução dos estudos para no futuro escrever um livro sobre ele. Nesse processo nasce um romance intenso e pouco provável entre Seth, o cientista nerd e recluso, e a sedutora e linda Veronica. Quando por um descuido na cabine em que ele entra para fazer o maior experimento de sua vida, o de teletransportar a si mesmo, seu DNA acaba se misturando ao de uma mosca que entra despercebida junto com ele na máquina.

Nessa década, meados dos anos 80, os EUA viviam forte influência de uma cultura pautada na competição, heranças políticas dos governos de Reagan e Thatcher e seus discursos neoliberais que desestruturam os laços de solidariedade. Isso se perpetua socialmente até hoje. Os nerds com seus videogames e computadores se isolando em sua inadequação ao o que havia de mais descolado: a moda, o exibicionismo, o culto ao corpo e a imagem. É incrível como Cronenberg traça uma metáfora perfeita em A Mosca, visto que Seth representa toda essa força anti-sociedade convencional. Ele se veste sempre com as mesmas roupas, segundo ele, assim como Einstein fazia, é descuidado com sua aparência, nunca sai de casa, é apegado à rotina e à solidão. 

Voltando a Kafka, em A Metamorfose o protagonista tem suas maiores preocupações pautadas na importância de seu emprego e no sustento de sua família, que depende inteiramente dele. O que mais o consome, perante os acontecimentos, é estar atrasado para o trabalho e o risco de perdê-lo. Preocupações essas essencialmente humanas – assombradas aqui também pelo neoliberalismo – fato que ameniza a percepção de sua transformação em inseto. Porém, perante a nova situação, a família de Gregor Samsa é obrigada a trabalhar, pois ele passa a ficar cada vez mais confinado em seu quarto. Sua desumanização é gradativa, até que em certo ponto ele não é mais filho, nem irmão, nem um Samsa, ele é apenas um animal.

Em A Mosca, assim que Seth começa a manifestar os primeiros sintomas de mutação, ele se torna quase um super-homem, uma versão bem mais evoluída de si mesmo. Sua disposição triplica, fica atlético, cheio de energia, a relação com Veronica se torna mais intensa e cada vez mais sexual. Ele parece anular qualquer tipo de insegurança que havia do típico nerd recluso em seus estudos, se tornando sociável e passando a aceitar o próprio corpo e a sentir-se orgulhoso dele. 

Histórias de experimentos que dão errado existem aos montes. Pode-se dizer que A Mosca é o Frankenstein e O Médico e o Monstro de David Cronenberg. Mas é justamente na direção que está toda a diferença e que faz do filme um marco na carreira do cineasta, se colocando definitivamente como um dos maiores do gênero. Goldblum e Geena Davis eram namorados na ocasião e foi Goldblum quem a sugeriu para o papel no filme. Dois atores que à época não tinham feito nenhum grande trabalho acabaram escolhidos e pelo olhar do diretor transformados em grandes forças, pois, de certo, nada melhor do que o gênero de horror para explorar ao máximo o potencial das atuações, nesse caso um horror corporal intenso. Goldblum depois viria a estrelar grandes filmes nos anos 90, como Jurassic Park (1993) e Independence Day (1996). Davis estrelaria Os Fantasmas se Divertem (1988) de Tim Burton e seria a metade da sensacional dupla no cult Thelma e Louise (1991), ao lado de Susan Sarandon

Um elemento que está engendrado no cinema de Cronenberg desde sempre é a análise do corpo humano e como isso pode ser palco para muitos pavores modernos. Outro bom exemplo é seu filme “eXistencenZ” de 1999, um sci-fi biológico, corporal e extremamente orgânico. Socialmente somos pressionados de muitas maneiras pela cultura do corpo perfeito para sermos aceitos. Um horror corporal como o que o diretor faz questiona de forma grotesca a cultura do socialmente aceito, traçando diretrizes importantes ao não pertencimento da imagem projetada pela sociedade a nosso próprio corpo. Em A Mosca, um ator com pinta de galã é posto ao extremo em sua metamorfose. Seu corpo atlético começa apodrecer, se decompor, criar bolhas, pêlos estranhos, soltar gosmas nojentas. Os efeitos práticos, maquiagens são usados de forma brilhante e super orgânica, funcionam muito bem e são capazes de impressionar até aos fãs mais acostumados com o gênero. Não à toa, o longa levou o Oscar de Melhor Maquiagem.

O distanciamento do “belo”, portanto, ganha espaço, ao passo que não nos distancia tanto assim do humano, do ser humano que busca egocentricamente ser reconhecido e amado. Seth, mesmo já metamorfo mais para mosca do que homem, ainda nutre sentimentos por Veronica e por fim, ao saber que ela está grávida de um filho seu, pensa de forma alucinada que poderiam se tornar uma só criatura, mesclando-se um ao outro e quem sabe revertendo todo o dano já causado.

Se na novela de Kafka encontramos uma metamorfose que anula o corpo de Gregor de súbito, o tornando impotente, nos mostrando como as limitações de seu novo corpo fazem com que todos a sua volta passem a desencaixá-lo de suas vidas e a excluí-lo socialmente ao ser desumanizado, mesmo sendo o pilar que sustentava a família. A mutação Cronenbergana faz com que Seth finalmente entre em real contato com seu próprio corpo, libertando-se de tabus e travas mentais, vivendo o máximo de seu potencial, enquanto não era engolido e totalmente consumido por ele e por suas próprias ambições. Em A Mosca somos expostos a como enquanto seres humanos somos compostos de matéria orgânica, nos aproximando mais dela, nos trazendo de volta ao corpo, desconfigurando-o.

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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