Está Tudo Bem | 2021

Está Tudo Bem | 2021

Diversos filmes já se debruçaram sobre a eutanásia, entre eles, destacam-se Mar Adentro, dirigido por Alejandro Amenábar e “Você não conhece Jack”, estrelado por Al Pacino. Por ser um assunto já retratado várias vezes no cinema, pode existir até um certo desinteresse após a leitura da sinopse de “Está tudo bem”, longa metragem dirigido pelo francês François Ozon, estrelado por Sophie Marceau e André Dussolier e que, no Festival de Cannes de 2021, concorreu à Palma de Ouro. Contudo, a forma como Ozon trata esta questão diferencia-se muito da forma mais habitual de abordagem, quase sempre cercada de muito moralismo.

Desde já, é importante situar o filme em um determinado contexto histórico. Alguns países passaram a legislar acerca da autorização da eutanásia e suicídio assistido, entre eles, Holanda, Portugal, Espanha, Colômbia, Nova Zelândia e Luxemburgo. Em alguns dos países citados, a discussão sobre esta possibilidade é muito recente, tendo os países ibéricos, por exemplo, legislado sobre estes temas entre os anos de 2020 e 2021. 

Aqui, é preciso atentar para um detalhe: o que é apresentado pelo longa é o ato denominado suicídio assistido (este ato também possui outras denominações). Todavia, como o escopo tanto desta medida quanto da Eutanásia é fazer com que pacientes em situação muito grave possam receber “ajuda para morrer” e, assim, não sofrerem (ainda) mais, não farei, nas linhas que seguem, diferenciação mais acurada entre os dois conceitos, tratando-os como se sinônimos fossem.

A narrativa do longa metragem enfoca na relação do personagem André Bernheim, um rico industrial e suas filhas Emanuéle Bernheim (interpretada por Sophie Marceau) e Pascale Bernheim (interpretada por Geraldine Pailhas), a partir do momento em que o genitor de ambas sofre um acidente vascular cerebral, o que muito compromete a sua saúde. Conforme o tempo passa e sua saúde vai, aos poucos, melhorando, aumenta em André a vontade de morrer (digo que aumenta porque o personagem já demonstrava, ainda mais jovem, possuir ideações suicidas).

Com base nesta premissa, a trama se desenvolve sob uma perspectiva bastante interessante acerca da relação entre pai e filhas que, mesmo sem descurar do inafastável desgaste emocional que a decisão pela eutanálisa gera, também se dedica a lançar luz sobre todos os procedimentos burocráticos que uma atitude deste calibre traz. 

Assim, ao mesmo tempo em que o diretor francês constrói cenas pautadas no sofrimento causado pela debilidade da saúde de André e sua vontade de morrer, também filma outras em que Emanuèle e Pascale discutem com um advogado aspectos absolutamente formais sobre como operacionalizar, respeitando a legislação, a vontade do pai. Esse aspecto, em si, chama muito a atenção por desnudar um lado que não costuma ser retratado e que, por certo, também engendra um sofrimento enorme em quem necessita ter forças para, entre documentos, reuniões e declarações, “formalizar” o desejo de suicidar-se trazido por um ente querido. 

Valendo-se das excelentes atuações de Sophie Marceau e André Dussolier, Ozon constrói de forma competente um cenário em que as cicatrizes de uma relação conflituosa entre André e, principalmente, Emanuèle, expõem-se cada vez mais. Em certos momentos, esta exposição poderia ter sido mais sutil, tendo o cineasta francês recorrido a diálogos expositivos que sempre deixam claro o “dilema” de Emanuèle: André foi um péssimo pai, mas, sendo filha, ela o amava.

Ao redor da relação entre pai e filhas (o filme enfoca muito mais em Emanuèle do que em Pascale) vários outros temas orbitam: a crítica ao sistema de saúde francês (a falta de cuidados com o paciente é justificada pela falta de funcionários); a misoginia de André, que se apreende através do inadequado tratamento dispensado às filhas e o desprezo pela neta; a sua anterior ideação suicida; e, por fim, a homossexualidade de André.

Este último tema é abordado de uma forma a reforçar alguns estigmas/preconceitos que se tem a partir de um relacionamento homoafetivo entre um idoso e alguém mais jovem. Gérard, com quem André passou a se relacionar após sua separação de Claude (interpretada de forma competente por Charlotte Rampling), é usualmente chamado de “canalha” por Pascale e Emanuèle, sendo considerado alguém que estava interessado tão somente no dinheiro que ganharia com a morte de André. O próprio Gérard, após o que seria o último encontro de ambos, mostra para Pascale e Emanuèle, quase que em um tom de provocação, que ele ganhou o relógio valioso que pertencera ao seu companheiro. 

O tema da homossexualidade de André, sem dúvida, é a temática mais interessante que gira em torno do tema central do filme, qual seja, a sua escolha pelo suicídio assistido. Todavia, esta parte da narrativa resume-se, quase em sua totalidade, a considerar Gérard como um vilão, sendo alguém que causa bastante nervosismo no enfermo, que pensa tão somente em ficar com seu dinheiro, que não possui boa relação com as filhas do seu companheiro e que deve ser mantido afastado da família Bernheim. Há apenas uma cena, bastante rápida, que traz o que seria o afeto que André e Gérard nutriam entre si. 

O filme é permeado por cenas emocionantes que trazem a sensação de luto antecipado e que expõem ao telespectador aquela dolorosa consciência de perceber que tudo o que se faz, se faz pela última vez com quem, dentro de poucos dias, irá morrer por opção própria, em ato planejado por muitas pessoas, com dia e hora marcados. O viver emparceirado das filhas com o pai é uma despedida constante, é uma sucessão de situações que não se repetirão mais.

No final do filme, André consegue, na Suíça, realizar o seu suicídio assistido em um procedimento sem intempéries. Como indica o título original do filme (Tout s´est bien passé), tudo ocorreu bem. Ora, tem-se que o final do longa-metragem, definitivamente, não é uma surpresa, sobretudo quando se reflete sobre o nome do filme que logo revela  como o filme se encerra.  

Em “Está tudo bem”, François Ozon realiza um filme contido e que, valendo-se de excelentes atuações de André Dussolier e Sophie Marceau, almeja tratar de um tema extremamente sensível a partir de uma mirada pouco moralista e raramente explorada, qual seja, o enfoque no cumprimento de burocracias que permeiam a decisão pela eutanásia/suicídio assistido e que, por certo, também geram muito sofrimento. Levando em conta suas aspirações, não há dúvida que o longa metragem cumpre dignamente com seu objetivo. 

O filme “Está tudo bem” é distribuído no Brasil pela Califórnia Filmes e estreia nos cinemas brasileiros em 02 de junho de 2022.

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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