Espero Que Esta Te Encontre e Que Estejas Bem | 2020

Espero Que Esta Te Encontre e Que Estejas Bem | 2020

Coincidência ou não, na semana em que escrevo este texto Agnès Varda completaria 94 anos. Não assisti a Espero Que Esta te Encontre e Que Estejas Bem pensando nisso, ou sequer esperando uma comparação. Mas é inevitável. Varda sempre foi uma cineasta movida pelo amor e pelo acaso. Seus documentários, principalmente, partem de uma inquietação e de uma esperança com o mundo que resgatam no espectador o sentimento de amor. Natália Bocanera escreveu para o Coletivo Crítico sobre Os Catadores e Eu, exemplo claro desse exercício documental da cineasta. O olhar de Varda é o de uma catadora de histórias; não aquele que se foca em uma única ideia, mas que se abre para mirar aquilo que afeta despretensiosamente, como as batatas do filme (que são muito mais do que batatas e conectam um mundo de narrativas e a si mesma).

Aqui em Espero Que Esta Te Encontre e Que Estejas Bem, a diretora e roteirista Natara Ney parte de um ponto em comum. Ela se deixa levar por uma história que conversa consigo, mas também com todos que ainda acreditam no amor. Em uma feira de antiguidades um maço de 180 cartas chama sua atenção. São dois anos dos sentimentos de paixão e saudades de Lúcia por Oswaldo durante os anos 50. Uma das vendedoras da feira diz algo muito importante: “aqui nós resgatamos”. É como se ali fosse o lugar onde as memórias podem parar e esperar que alguém as encontre novamente. Interpelada pelas cartas, Ney inicia seu filme com o objetivo de devolver os escritos para os donos, mas também de contar uma história de amor, crendo na sinceridade daquelas palavras tão doces nos papéis velhos.

Seu engajamento nos leva à mesma crença. Durante toda a projeção torcemos para que as cartas cheguem às mãos que a escreveram ou ao destinatário. Junto com a cineasta nos perguntamos se aqueles personagens estão vivos; por ora duvidamos que seja possível encontrá-los, mas, mesmo sem ver Natara Ney nas câmeras, percebemos a obstinação em sua voz. É certo que todos estamos afetados. Na jornada por aquele caso de amor específico, muitos outros surgem. Nos anos 50 a expressão era outra: a das letras, a do romance. Quando essa forma se cruza com os olhares de hoje, há o espanto. Um dos pontos mais interessantes de Espero… é quando Ney entrega as cartas à leitura de estranhos. Alguns mais jovens falam de um romantismo perdido; outros mais velhos retomam suas próprias lembranças de tempos áureos do amor. Onde estão as cartas de hoje?

O tempo agora é outro Tempo. Escrever foi um hábito consumido pela vida sistemática e imediata. A comunicação se tornou simples, porém tão superficial. Teria mudado também o amor ou apenas a sua expressão? Não se ama com a mesma intensidade? Então, talvez seja mesmo preciso esse resgate. Ney é, claro, a contadora da história, mas, ao mesmo tempo, é chamada pelo que conta, é exigida pela história e se coloca como parte das palavras e sentimentos de Lúcia. As amantes compartilham a complexidade das paixões.

De Campo Grande, onde a mão firme de Lúcia escrevia sobre o papel, até o Rio de Janeiro, onde Oswaldo receberia as cartas, percorremos o aflito caminho junto com a diretora. Quando a resposta parecia estar próxima, éramos desencontrados. O mérito é que o filme não se perde nas frustrações. Na verdade, ele liberta outras histórias de outras pessoas que ali estão. A diretora não compartilha apenas sua missão íntima na jornada das cartas, mas quer que todos despertemos para aquele Tempo da memória de um grande amor. Não podemos esquecer a história que hoje nos é tão distante e opaca. Se o amor agora é outro, Ney quer que percebamos que não deve ser assim, tão pouco intenso. Resgatemos as coisas simples e fortes.

Relembrar os amores de outrora não faz o filme saudosista. Natara Ney encontra pessoas e pede para que leiam as cartas de Lúcia. Quando idosas entram em contato com os escritos, a diretora faz questão de incluir comentários a respeito do presente. O que mudou? As cartas tinham um significado profundo e romântico, mas as senhoras falam dos desafios daquele tempo, do que representava ser mulher naquela época. Fotos e revistas antigas adornam os depoimentos. Outra senhora diz que todos os momentos são bons, inclusive sua velhice. Mas inclui um adendo: que o mal de Alzheimer não tome sua memória. Por mais que haja o apego ao passado, ele também precisa ser questionado.

Quando as pistas esquentam, os olhos brilham. Uma vizinha que conheceu outra senhora que era parente da cunhada de Lúcia. Um endereço que nos leva a um novo proprietário que sabe de outro contato que pode nos levar até Oswaldo. Aquela história começa a ganhar contornos pelos rostos nas fotografias antigas. Aquele amor cortado pela distância realmente aconteceu e resistiu. Uma frase em uma das cartas é uma luz na escuridão da desesperança: “se não for uma porta é uma janela”. O romance se cruza com a ditadura militar, com Oswaldo aviador na Panair, com um encontro de ex-funcionários da empresa fechada pelos militares. Outras pessoas cheias de memórias, com um futuro que lhes fora cortado, mas que ainda persistem no saudosismo. É nesse evento que surge um endereço essencial, a última tentativa.

Chegamos ao fim com suspiros. Espero Que Esta te Encontre e Que Estejas Bem me lembrou sim os documentários de Varda porque me lembrou que precisamos da vida mais intensa. Precisamos olhar pessoas como pessoas, não como vultos. Me lembrou que a memória de cada um merece ser contada, me lembrou que devemos desacelerar o relógio e sincronizá-lo com um outro Tempo, não esse cronológico. Me fez pensar como o filósofo Espinosa que entendia a natureza e a ligação entre todos os elementos, a ciência dos afetos. Histórias de amor, de violência, de resistência, de dor… É preciso que resgatemos a nossa ligação com a vida, sentindo-a.

Espero Que Esta Te Encontre e Que Estejas Bem chega aos cinemas no dia 09 de junho, distribuído pela Embaúba Filmes.

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