O Piano e a mulher selvagem de Clarissa Pinkola Estés

O Piano e a mulher selvagem de Clarissa Pinkola Estés

“A Mulher Selvagem ensina às mulheres quando não se deve ser ‘boazinha’ no que diz respeito à proteção da expressão de nossa alma. A natureza selvagem sabe que a ‘doçura’ nessas ocasiões só faz com que o predador sorria. Quando a expressão da alma está sendo ameaçada, não é só aceitável fixar um limite e ser fiel a ele; é imprescindível”.

Mulheres que correm com lobos, Clarissa Pinkola Estés – Capítulo 02 – A tocaia ao intruso: O princípio da iniciação

Há uma cena em O Piano, filme roteirizado e dirigido por Jane Campion, em que Ada (Holly Hunter) assiste a uma peça de teatro que encena o conto do Barba-azul. A história não é identificada, mas é facilmente percebida por aqueles que a conhecem. De forma sutil, Campion revela, nessa única cena, o que parece ser o motivador principal de seu filme: a luta enfrentada por uma mulher que se recusa a assassinar a expressão de sua alma, que não se permite enclausurar nas amarras impostas pelo predador.

No livro Mulheres que correm com lobos, da analista junguiana Clarissa Pinkola Estés, a história do Barba-azul aparece em seu segundo capítulo. Do conto, que vem sendo reproduzido por muitas gerações em lugares e culturas diferentes do mundo todo, a analista extrai o arquétipo do predador, do intruso, do assassino da psique feminina, que impõe limites ao conhecimento e ao potencial da mulher. Na história, Barba-azul concede à sua esposa todo conforto e possibilidades domésticas, havendo em sua casa um único cômodo que ela manifestamente é proibida de entrar. Quando o esposo vai viajar, deixa a chave do cômodo com a esposa, e essa, tomada pela curiosidade, adentra o local proibido e sofre as consequências por ultrapassar os limites que lhe foram impostos.

Barba-azul não foi inserido em O Piano por acaso. A obra de Campion e a interpretação do conto por Pinkola Estés dialogam entre si. Foram, inclusive, lançados em épocas próximas, o livro em 1989, o filme em 1993.

Dita a premissa, O Piano é uma construção artística que nos insere na jornada de Ada, uma mulher europeia e muda (elemento muito simbólico da narrativa), vítima de um casamento arranjado, que se vê obrigada a mudar-se para uma Nova Zelândia em processo de colonização. Consigo, leva sua filha, Flora (Anna Paquin), poucos pertences e um piano, sua verdadeira voz e expressão. O filme é narrado por uma voz infantil que representa a mente e os pensamentos da própria protagonista.

De fato, é um filme de grandes feitos dirigido por uma mulher de grandes feitos. Indicado a oito categorias do Oscar, saiu-se vencedor em três delas (todas entregues a mulheres): melhor atriz para Holly Hunter, melhor roteiro original para Jane Campion e melhor atriz coadjuvante para Anna Paquin, essa aos seus 11 anos. Campion, que é neozelandesa, foi consagrada como melhor diretora por Ataque dos Cães no Oscar 2022, sendo a única mulher a concorrer à categoria por duas vezes.

A jornada às terras estrangeiras só é possível por barco. Ada, sua filha e o piano são deixadas numa praia deserta e inóspita, onde precisam passar a noite, já que não há ninguém para recebê-las ali. No dia seguinte, Ada conhece seu futuro marido, Alisdair Stewart (Sam Neil), que alisa os cabelos ansioso para conhecer a prometida esposa.  Ao conhecê-la, Stewart, acompanhado do povo originário maori e de George Baines (Harvey Keitel), uma espécie de administrador de terras que intermediava o contato entre colonizador e colonizado, pergunta à Baines o que ele achou da mulher. “Ela parece cansada”, é a resposta de Baines. Alisdair retruca: “Ela é pequena demais”. A diferença entre os personagens já é aqui estabelecida.

Para desespero de Ada, o esposo se recusa a transportar o piano. É grande demais e desnecessário, na visão dele. A indignação da personagem, assim como toda sua comunicação, é expressa por sua filha Flora, que dialoga com a mãe em linguagem de sinais e traduz com a devida e apropriada entonação tudo que a mãe quer dizer. Ada confronta o marido, propõe abandonar seus demais pertences para que o piano pudesse ser transportado, mas prevalece a vontade do homem. Em poucos minutos de filme, portanto, somos introduzidos a uma protagonista que, embora muda, não se cala, e que notoriamente possui uma relação importante com o instrumento.

Casada às pressas, é forçada a se vestir de noiva para que o momento fosse fotografado mesmo em meio à chuva e à lama, lama essa presente em todos os lugares devastados pela colonização e elemento importante para ironizar a relação do invasor que tenta se encaixar naquele espaço. No dia seguinte ao casamento, assim que o marido viaja, Ada convence Baines a levá-la até a praia onde o piano foi deixado. Na praia, é quando a vemos de fato tocar o piano pela primeira vez em tela, e passamos a compreender que sua relação com o instrumento é de sobrevivência. Em uma cena belíssima, a Ada que toca o piano é uma mulher leve, que finalmente respira, que sorri, que observa a filha brincar. E quem a nota com admiração é Baines, que posteriormente oferece à Stewart um pedaço de terra em troca do instrumento, alegando desejo de aprender a tocar, o que leva Ada a ser sua preceptora.

Contudo, revela-se a intenção de Baines: ele permite que Ada toque o piano e promete devolvê-lo a ela, e em troca, ela deve permitir que ele toque seu corpo. Nessa barganha ela compra, a cada dia, algumas peças do piano com seu corpo.

Comportando muitas camadas de reflexão, o longa aborda a opressão feminina por todo sistema patriarcal, desde o aprisionamento dos corpos e psiques femininos através da submissão da protagonista ao casamento arranjado, até a elevação de uma mulher, ainda que desprovida de voz propriamente dita, que luta para impor suas vontades e desejos próprios, e manter-se na liberdade trazida pelo piano.

A existência de Ada é uma afronta ao sistema e à cultura ao seu redor. Sua mudez, inicialmente interpretada pelo marido como algo bom (“Se Deus ama as criaturas débeis, por que não vou amar?), assusta porque é contraditória à sua personalidade impositiva, que não é esperada. Embora muda, Ada não se considera, e nem é, silenciosa. A forma como ela toca o piano e a música que dele extrai deixam o marido e as empregadas carolas da casa assombrados, por significar muito mais do que notas musicais ordenadas. “Unholy”, é como Flora é levada a descrever a música da mãe.

“É que as antigas qualidades e forças femininas são imensas e causam espanto. É compreensível que, na primeira vez que se deparam pessoalmente com os Antigos Poderes Selvagens, tanto os homens quanto as mulheres lancem um olhar ansioso e deem o fora; tudo o que se vê deles são patas que voam e rabos assustados.”

Farejando os fatos: O resgate da intuição como iniciação – pág. 113

O “ultraje” de Ada reside ainda na esfera erótica. O erotismo é trabalhado por Campion com bastante sutileza e respeito, sem deixar de ser sensual. O furo na meia calça da protagonista tocado por Baines é sensual com nenhuma exposição de corpos femininos. A relação sexual que ela passa a manter com Baines também assusta o marido, não porque se sente traído, mas porque não se espera que Ada seja uma mulher sexualmente ativa e que não hesita em se entregar. Nesse sentido, a própria mudez de Ada passa a ser erótica aos olhos do marido, que descobrindo a traição e mostrando-se confortável na posição de voyeur, se vê no direito de impor seu poder através da violência sexual.

Campion encontra espaço em sua obra para retratar, ainda, mesmo que secundariamente, as misérias da colonização e o tratamento europeu para com os maoris, que muito embora sejam vistos como incivilizados pelo colonizador, são apresentados pela diretora como um povo que mantém igualdade de gênero e respeita a liberdade sexual (há claramente um personagem queer entre os maoris) e a ancestralidade. A diretora faz questão de exibir o colonizador como uma peça fora do lugar naquele ambiente, principalmente nos figurinos, camadas e camadas de vestimentas que contrastam com o ambiente lamacento e devastado pelo homem branco.

A intenção da diretora de mostrar a luta do povo originário local pelo respeito à ancestralidade e pela preservação de seus costumes e cultura é patente quando Stewart deseja comprar, com algumas armas e objetos europeus insignificantes, um pedaço de terra onde os ancestrais maoris haviam sido enterrados. O povo resiste e vê a proposta como desrespeitosa, por razões que o colonizador europeu jamais poderá entender por se ver superior.

O personagem de Baines, embora igualmente colonizador e europeu, é colocado numa posição respeitosa perante os maoris, sendo muito próximo a eles e aderindo a elementos de sua cultura, como as tatuagens típicas desenhadas em sua face. E essa é uma das claras diferenças entre o personagem e o esposo de Ada. Enquanto Baines se associa ao povo originário, Stewart se esforça para manter-se europeu em vestimentas e costumes para deles divergir. Ao passo que Baines enxerga o piano como fundamental à sobrevivência de Ada, Stewart não o compreende. Enquanto Baines se apaixona por Ada como ser completo em toda sua potência, se arrependendo, inclusive, do pacto proposto e entregando a ela o instrumento, o marido a trata como incapaz. Baines ama a expressão selvagem de Ada, Stewart a teme. Prefere que a mulher selvagem adormeça para prevalência da doçura e do conformismo.

A interpretação de Ada como doente e incapaz por parte do marido e sua total falta de compreensão para com sua personalidade é bem colocada pela diretora quando Ada, desprovida do piano, desenha teclas na mesa para tocá-lo em sua mente. Stewart vê a cena com espanto, confidenciando para suas empregadas carolas que suspeita que sua esposa seja não somente muda, mas possua alguma deficiência intelectual. É dessa forma que a mulher selvagem que não renuncia aos anseios de sua alma é vista por aqueles que lhe querem impor amarras e desejam uma normalidade cultural.

Há, inclusive, uma inversão de papéis entre os personagens masculinos naquilo que eles aparentam ser perante os olhares da civilização. Baines é tido inicialmente como ogro e grosseiro, mas é quem se sensibiliza com a música de Ada, e Stewart, que não se cansa de manter-se com aparência civilizada e comportada, é quem pratica violência psicológica, sexual e física contra a esposa, culminando na cruel e violenta cena em que ele finalmente espera ter aprisionado de vez as vontades da mulher através da mutilação.

A mutilação de Ada pelo marido é a típica tentativa de assassinato da mulher selvagem. O homem mata na mulher aquilo que possibilitava a alimentação de sua psique, para que ela esqueça o ser que não se curva que nela habita e se submeta não aos seus próprios anseios, mas aos desejos da sociedade patriarcal. Após ser ferida, Ada permanece inconsciente e em febre por um período, e nesse estado de impotência é estuprada pelo marido. É assim que ele tenta exercer seu domínio sobre ela, é esse ser impotente e inconsciente que ele almeja como mulher.

A mudez de Ada torna ainda mais agonizante a violência sofrida. Enquanto é mutilada, não emite um som sequer. E aqui, importante destacar o tripé feminino que torna possível a grandiosidade desse filme: a própria Campion, Holly Hunter como Ada e Anna Paquin como Flora. A performance das duas atrizes é colossal, e dificilmente haverá no cinema algo que se possa se aproximar do que foi feito por elas sob a direção de Campion.

A mulher selvagem, porém, não se deixa morrer facilmente. Ada não se curva mesmo ante a violência extrema praticada pelo marido. Ao contrário, prefere morrer fisicamente a permitir a morte daquilo que é o fundamento de sua existência. Se há uma morte a ser escolhida, que seja a física, para que sua alma permaneça íntegra.

“Não importa de que forma a cultura, a personalidade, a psique ou outra força qualquer exija que a mulher se vista ou se comporte; não importa como eles todos possam desejar manter as mulheres vigiadas por suas damas de companhia, cochilando por perto; não importa que tipo de pressão tente reprimir a expressão da alma da mulher, nada disso pode alterar o fato de que uma mulher é o que é, e que sua essência é determinada pelo inconsciente selvagem, o que é bom”.

A tocaia ao intruso: O princípio da iniciação – pág. 89.

Ada encontra no piano a plena libertação da mulher selvagem. O piano é a sua própria expressão, é a voz que ela não possui e que não lhe faz falta, é o que impede seu aprisionamento. Por conseguir se expressar através do piano e nele ser completa, causa estranheza e medo, pois reflete uma força que não lhe é permitido possuir. O Barba-azul da história é um elemento que pode ser interno, um ser que habita nossa psique e que procura nos aprisionar, mas aqui o é, principalmente, externo. Ada foi curiosa, abriu a porta que lhe era proibida, e foi punida pelo marido.

Jane Campion parece possuir uma relação sinistra com cordas. Da mesma forma como a corda em Ataque dos Cães é determinante no desfecho de Phil, aqui em O Piano é usada por Ada na esperança de ser levada pelo mar. Há quem diga que o final da protagonista é controverso. Fato é que a personagem, sendo uma mulher de escolhas próprias, impositiva quanto aos seus desejos e fiel aos seus impulsos, parece escolher: “What a death. What a chance. What a surprise. My will has chosen life”, nos narra sua voz interna infantil.

A luta de Ada não é por sua existência física, mas pela sobrevivência de sua mulher selvagem. A personagem é fiel para com ela mesma. Ser estranha aos olhos das pessoas a satisfaz, é a prova de vida dos desejos e escolhas do seu eu mais profundo. Clarissa Pinkola Estés aqui se insere uma vez mais, por fim, traduzindo a expressão de Ada no sexto capítulo de seu livro:

“Se você alguma vez foi chamada de desafiadora, incorrigível, saliente, esperta, insubmissa, indisciplinada, rebelde, você está no caminho certo. A mulher selvagem está por perto.”

À procura da nossa turma: A sensação da integração como uma benção, pág. 228

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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