Autodeclarado | 2022
As popularmente chamadas cotas raciais integram parte muito recente da história das políticas públicas no Brasil. Como ação afirmativa passou a ser incorporada em algumas universidades a partir de 2004, sendo a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) a pioneira a instituí-la. Entretanto, apenas em 2012, por meio da Lei n° 12.711, durante o governo de Dilma Rousseff, é que as cotas raciais foram regulamentadas, passando a obrigar a reserva de vagas de graduação à autodeclarados pretos, pardos e indígenas.
A importância dessa ação afirmativa excede o campo da democracia aplicável ao sistema educacional. Autodeclarar-se preto ou pardo tornou-se recurso identitário, de autoidentificação racial, de conexão ancestral. A essencialidade dessa afirmação de identidade torna-se ainda mais relevante em um país como o Brasil, cuja característica miscigenada é vendida com riqueza no estrangeiro, mas que é fruto de um passado de violência, abre um debate sobre colorismo, e continua criando mecanismos de racismo e controle racial de árdua identificação e combate.
Com a instituição das cotas raciais, vieram as autodeclarações fraudulentas de raça. Pessoas brancas passaram a autodeclarar-se pardas ou pretas para incluir-se num sistema a elas não reservado. A prática de fraudes tornou necessária a criação de Comissões de Heteroidentificação, que analisam exclusivamente o fenótipo do candidato autodeclarado preto ou pardo, como forma (ou tentativa) de sanar o problema. Essa comissão, multirracial, é composta por pessoas que decidem se o candidato é ou não preto ou pardo, como autodeclarou-se ser. Entretanto, o instrumento de identificação de fraudes tornou-se também meio de questionamento de identidades. Pessoas de ascendência negra mas que não são retintas passaram a ser declaradas brancas pela Comissão e rejeitadas pelo sistema de cotas raciais, o que gerou, para além de possíveis injustiças, uma crise de identidade racial e pertencimento. Afinal, a autodeclaração não deveria bastar? Qual a melhor maneira de reprimir falhas e fraudes no sistema de cotas? Não estaria a Comissão de Heteroidentificação se tornando um mecanismo de controle racial criado pela própria branquitude para perpetuar a opressão?
Responder tais questionamentos não é a intenção de Maurício Costa, diretor do documentário “Autodeclarado”, que de forma bastante didática entrevista candidatos rejeitados pelo sistema de cotas e acusados de fraude, e também especialistas, acadêmicos e estudiosos do tema, apresentando as teses de defensores e contestadores da Comissão de Heteroidentificação, de forma a demonstrar como estamos ainda muito longe de alcançar um ideal realmente democrático de concretização das políticas públicas relacionadas às cotas ou de solucionar as fraudes do sistema.
Debatendo também sobre colorismo, um questionamento bastante pertinente que o documentário traz diz respeito a como o sistema de detecção de fraudes vem contrariando a autoidentidade racial de pessoas pardas. Pessoas pretas de pele clara não são retintas o suficiente para serem consideradas negras na análise fenotípica. Entretanto, perante a branquitude, jamais serão brancas. O documentário destaca, por exemplo, estereótipos raciais fincados principalmente contra mulheres pardas, vítimas da hipersexualização de seus corpos. Há estudiosos que afirmam que o termo “pardo” precisa ser extinto, uma vez que ao invés de solucionar uma identidade racial, torna possível a criação de outros mecanismos de controle, como os expostos pelo filme.
A armadilha do retrocesso que facilmente podem cair as Comissões de Heteroidentificação são destacadas por Maurício Costa também na forma como são estabelecidos os critérios de análise fenotípica. Critérios de ancestralidade não são aceitos em muitas Comissões. Muitas universidades possuem um checklist de traços que precisam estar presentes na identificação: cabelos crespos (os cacheados já são controversos), formato do nariz e da boca, tonalidade da pele. A controvérsia de tais critérios, cuja natureza abre uma ampla margem de discussão, torna possível aos estudiosos remeter tal análise à teoria do médico Lombroso, que defendia a predisposição biológica do indivíduo à conduta antissocial e criminosa.
Apesar de em alguns momentos tornar-se excessivamente didático, lembrando muito o formato televisivo de reportagens, ou utilizar-se repetidamente de recursos sonoros e visuais que remetem as entrevistas à vídeos de redes sociais que por vezes cansam a experiência, “Autodeclarado” expõe à mesa questionamentos que bem demonstram como a sociedade ainda está longe de tornar possível um espaço de democracia racial. E principalmente, coloca uma pá de cal em qualquer vazio argumento que busque a extinção das cotas raciais por qualquer motivo que seja – esse é, de fato, um questionamento que sequer deveria existir.