Crimes do Futuro | 2022
“A dor tem uma função. É um sistema de aviso que nós não temos mais. E como isso aconteceu? O que isso significa? E as infecções? Infecções? O que aconteceu com elas? Ninguém mais lava as mãos”.
Existe limite para a evolução física e criativa do ser humano? O que resta a fazer quando nada mais houver para expressar? O que haverá a zelar se o corpo humano evoluir a ponto de extinguir doenças e infecções, a ponto de extinguir a própria dor?
O corpo humano, orgânico, esgotável, é também adaptável e evolutivo. A mente humana, por sua vez, é infinitamente expansível à criatividade. Vemos traços da continuidade evolutiva não só no aspecto biológico (músculos como o palmar longo já não se fazem presentes em cerca de 10% dos seres humanos), mas também a direcionamos pela cultura e pela tecnologia. Esse direcionamento possibilitou ao homem utilizar sua capacidade inventiva em seu favor, mas também trouxe consequências que escancararam a finitude dos recursos naturais e comprometem essa mesma vida que evolui. Como dito, o corpo humano é adaptável. E partindo dessa capacidade de adaptação é que David Cronenberg, após um hiato de 08 anos desde seu último filme (o satírico Mapa para as Estrelas), confronta sua própria criação e sua própria evolução como artista.
Numa realidade futura pós catástrofes ambientais caracterizada por uma moderna e minimalista direção de arte, em um mundo onde os seres humanos não mais padecem de infecções e se veem imunes à dor, os protagonistas Saul Tenser (Viggo Mortensen, em nova parceria com Cronenberg) e Caprice (Léa Seydoux) são performers na expressão artística mais almejada do momento: a realização de cirurgias públicas de remoção de novos órgãos.
Na criação de Cronenberg, humanos adquiriram a capacidade evolutiva de criar órgãos em seus corpos. Órgãos nunca antes vistos e em pleno funcionamento, mas que necessitam ser removidos por não oferecerem um encargo específico e útil ao corpo humano, tal como tumores. Os novos órgãos são a grande obra de arte naturalmente criada pelo organismo. Saul Tenser é visto como gênio que mantém sob controle a criação de seu corpo, e Caprice é a artista que move o pincel cirúrgico. Os protagonistas performam a remoção como um artista que pincela sua tela, transformam o ato cirúrgico de desnecessária anestesia não só em arte, não só na profissão do momento, mas como desafio e prazer a esse próprio corpo indolor.
“Cirurgia é o novo sexo”, é o que afirma a personagem Timlin (interpretada com excelência por Kristen Stewart). Àqueles desprovidos de dor, a dor se torna um objetivo inalcançável. Seu quase alcance através da erótica cirurgia faz emanar o prazer que substitui o sexo. Timlin, obcecada e atraída por Saul, deseja ser operada por ele, almeja a sensação de quase dor que se tornou o novo orgasmo. A figura de Saul, esse ser constantemente operado, de aparência doente e dificuldades de deglutir, representa o que há de atraente naquela sociedade. Caprice e Saul traduzem o domínio da mutação do corpo humano ao mesmo tempo em que a desafiam.
O corpo que Cronenberg faz performar carrega aspecto menos humano e mais sintético. Evolui conforme o ambiente, e o ambiente naquele futuro é artificial, é plástico, é calamitoso. A exposição de seus cortes e órgãos o aproxima daquilo que seu hospedeiro passou a indiretamente consumir: o próprio plástico. O ápice evolucional no universo de Caprice e Saul é a capacidade do corpo de digerir o plástico consumido, habilidade que passa chamar a atenção quando a dupla de artistas é chamada a realizar uma autópsia pública (um verdadeiro espetáculo) no cadáver de um menino assassinado pela própria mãe por nascer uma criatura consumidora de plástico.
“A evolução humana é uma preocupação. Está dando errado. Está descontrolada, insurrecional. Pode nos levar a um lugar ruim. Veja o que aconteceu ao limiar da dor, por exemplo. O mundo é um lugar muito mais perigoso agora que a dor desapareceu”.
Crimes do Futuro, o retorno do diretor através desse elegante body horror, é uma autópsia das décadas criativas de David Cronenberg. Explorando interpretações peculiares de nomes gigantes no cinema mundial, é fundamentado em corpos, seus movimentos e sua linguagem. Corpos performáticos dentro e fora do filme. É um mergulho interior à expansão criativa do diretor, que questiona suas obras e sua capacidade de continuar criando, quando tanto já disse através da sua arte, numa simulação de mundo em que as expressões artísticas se modulam e se adaptam à evolução humana e do ambiente, todas tão intrinsecamente conectadas.
O filme foi visto em pré-estreia no Cine Marquise a convite da Mubi e da o2 Play Filmes. Estreia nos cinemas brasileiros dia 14 de julho e estará disponível na plataforma da Mubi a partir de 29 de julho.
Sensacional!