Lazzaro Felice e a Infeliz Condição Proletária
Lazzaro. Lazzaro. Este é um nome que ecoa desde os primeiros minutos até depois da projeção. Começamos ouvindo como um chamado por esse personagem que quase sempre está divagando feito um sonhador e precisa acordar para o serviço. Depois de tanto ser requisitado ao longo do filme, aprendemos que esse nome não mais representa aquela pessoa, mas toda uma condição humana no mundo moderno capitalista. Lazzaro se transforma em um conceito que transcende a obra e que, como o vento, é soprado até nós. Agora é um nome místico, ao mesmo tempo ingênuo e poderoso, pois renova alguma crença que ainda se possa ter no ser humano. Mas, nem toda a felicidade e pureza de Lazzaro nos tira a infelicidade da consciência que tomamos de nossa condição proletária.
Na pequena comunidade conhecida como La Inviolata (em português “a inviolada”) o plantio de fumo faz a intensa rotina daquele povo. Acompanhamos o processo penoso do trabalho manual, do manejo com a terra e com animais. Dentro de um casebre vivem dezenas de pessoas empilhadas que dividem uma lâmpada para iluminar o quarto ou a cozinha. Mas, mesmo assim, o povoado transborda alegria. Logo na primeira cena somos apresentados a essa dualidade: há o amor e o humor, porém nada para se comer e celebrar a união do novo casal depois de uma serenata. Os períodos de duro labor são cortados por contações de histórias, cantorias e bebedeiras. Nesse meio, Lazzaro assume o papel máximo dessa ambiguidade. Forte como poucos, não nega trabalho e fica feliz em atender todos os pedidos que lhe fazem. Os breves momentos em que ele para e congela seu olhar em algum lugar, como se fugisse daquele sistema de vida, são logo interrompidos pelo chamado: Lazzaro! Lazzaro!
A diretora e roteirista Alice Rohrwacher constrói o ambiente como um personagem do filme. Inviolado, intocado pelo tempo, ou um sistema “perfeito” por não ser corrompido. A desconstrução é sútil, até nos darmos conta da real condição da vila. Uma espécie de contador chega até o vilarejo (acompanhado de um padre) para calcular as finanças. Todo povo se reúne aguardando o resultado, mas nada novo acontece: mais um mês em que eles estão “devendo a proprietária”. O trabalho debitado da alimentação e subsistência dos trabalhadores fez com que eles aumentassem sua dívida com a dona da terra. O que se tem é um sistema feudal. A presença do padre na hora da cobrança é muito significativa se pensarmos na Igreja como parte desse mecanismo e na devoção religiosa que eles têm com a proprietária. A dona é a marquesa Alfonsina De Luna, “rainha do tabaco”, escravista do povo, que vê em La Inviolata o retiro para seus problemas burgueses. Sua chegada, junto de seu jovem filho, Tancredi, revelam as relações exploratórias ali impostas.
O povo, inconsciente de sua real condição, continua o trabalho. A marquesa e o filho são atendidos por todos. Tancredi é o arquétipo do adolescente mimado e rebelde. Há um breve esboço de revolta quando o jovem desafia a mãe sobre as condições que ela impôs àquelas pessoas. Mas não passa de uma falsa revolta, já que Tancredi continua usufruindo de seu status. Entretanto, é o arco dramático desse personagem que nos leva a uma mudança total no filme. Quando ele resolve quebrar o tédio e simular seu próprio sequestro, acaba criando uma estranha amizade com Lazzaro. Ao coração puro de Lazzaro, a relação dos dois se torna uma irmandade: “meu meio-irmão”. Explorado de toda forma, é ele quem provém alimento a Tancredi e mantém seu segredo.
A quebra acontece porque a filha do contador de La Inviolata chama a polícia para relatar o sequestro de seu amado Tancredi. Lazzaro havia ficado doente e por isso se ausentou dos cuidados com o filho da marquesa. Quando desperta vai imediatamente a seu esconderijo carregando a culpa pelo abandono. Um helicóptero da polícia, máquina nunca antes vista pelo povoado, chega ao local. Não apenas vemos a quebra da realidade do povo, mas também a nossa ao constatar que a narrativa é em nosso tempo. É nesse momento que nasce a consciência da exploração. Os policiais revelam que no “mundo lá fora” existem leis trabalhistas, salários, condições mínimas para o trabalho. Todos são levados para a cidade e o caso fica famoso na Itália. E Lazzaro? O mais ingênuo dos homens, a caminho do esconderijo de Tancredi, acaba caindo em um penhasco, o que seria seu fim.
Anos depois temos uma nova realidade. O trabalho mudou, mas não tanto, já que, agora, as relações de classes colocaram os remanescentes de La Inviolata às margens da sociedade. O que seria a libertação do povo que ainda vivia no sistema feudal, acaba sendo a vida na periferia não assistida. A subsistência só acontece por conta de pequenos delitos, roubos e golpes. Rohrwacher constrói agora um novo ambiente em torno do trabalho. A ligação entre esses dois pólos ainda é Lazzaro. Diante da maldade do mundo, sua pureza transforma o filme em um realismo fantástico e dá à vida o verdadeiro sentido da fé.
O caminho de Lazzaro é o mesmo dos famintos, dos imigrantes que têm a fé em uma vida melhor em outra terra. A burguesia, representada pelo agora velho Tancredi, é falida e louca. São faces da mesma moeda, são novas engenharias de um sistema que sempre se renova e trata de oprimir novamente. O martírio do herói mostra, por um lado, a passividade do povo oprimido, por outro, uma humanidade que ainda tem um coração. A diretora e sua equipe retomam movimentos clássicos do cinema italiano, o atualizam e criam um retrato sensível da vida contemporânea. É um filme emoldurado como uma fábula que sintetiza uma lição moral e, consequentemente, política.
No capitalismo selvagem o homem é o lobo do próprio homem. As relações de trabalho instauram uma nova escravidão em outros termos. Mas até o lobo percebe a fome de seu parceiro e o ajuda. Na verdade, quem mata nosso herói é o banco, não o lobo. No final ouvimos o sopro do nome Lazzaro. Lazzaro! Talvez o momento mais belo do filme, quando a música sai da catedral e acompanha Lazzaro, se repita com o espectador pelo seu nome. É esse o efeito de uma obra política e transcendente ao mesmo tempo. Um relato de fé e de dor, pois sofre aquele que tem consciência de sua real condição.