Diários de Otsoga | 2021

Diários de Otsoga | 2021

A situação de pandemia que o mundo todo tem vivenciado, ainda que atravessado por desigualdades substanciais, impactou também profundamente a produção cinematográfica. Diversos filmes interromperam suas produções, adiaram seu lançamento e até mesmo o Oscar derrubou a exigência de que os candidatos à estatueta tivessem lançado seus filmes em salas de cinema dos Estados Unidos. Após a vacinação e a queda das mortes causadas pela COVID19, tanto a produção quanto a distribuição cinematográfica retomou suas atividades, vários filmes suspensos tiveram sua gravação retomada e, para 2023, a academia volta a exigir que os candidatos ao prêmio tenham sido lançados nos cinemas estadunidenses no ano anterior.

Toda a insegurança trazida pela pandemia, bem como as necessárias restrições sanitárias exigidas, poderia nos fazer supor que teríamos poucos esforços de realização cinematográfica cujo tema central seria a própria pandemia. Para a nossa sorte, contudo, algumas produções ousaram gravar mesmo durante o contexto pandêmico e buscaram representar nas telas a realidade desse período.

Me recordo de ter assistido a Diário de um confinado, série lançada ainda em meados de 2020, protagonizada por Bruno Mazzeo, que buscava retratar a situação inusitada a que nos víamos submetidos naquele momento. Apesar de eficiente, a série se propunha a ser um alívio cômico, abusando da hipérbole em suas representações. Mais recentemente, Natália Bocanera escreveu para o Coletivo Crítico sobre o filme Seguindo Todos os Protocolos que aborda de forma mais sensível o tema do isolamento social.

Lançado internacionalmente em 2021 e com estreia prevista no Brasil para o dia 21 de julho de 2022, Diários de Otsoga é dirigido por Miguel Gomes, um dos mais promissores diretores portugueses diretor também de Tabu (2012), e tem com co-direção de Maureen Fazendeiro. O longa-metragem aborda este cenário pandêmico explorando o dia a dia de três jovens que, isolados do resto do mundo, dividem a mesma casa em um sítio e passam a construir um borboletário.

Esse processo, contudo, não nos é apresentado de forma convencional. Os diretores optam por apresentar a história de trás pra frente, começando no “dia 22” e terminando naquele que seria o primeiro dia dos sujeitos naquele ambiente. O título “Otsoga” é fruto dessa proposta, grafando o mês de Agosto ao contrário. A subversão proposta, contudo, não se restringe à ordem dos acontecimentos, mas se aplica a toda a narrativa. Os diretores optam por construir a trama a partir apenas de registros dos modos de vidas daqueles sujeitos, sem lançar mão de uma narrativa tradicional, com a divisão em três atos facilmente identificáveis.

Digo “sujeitos” e não necessariamente “personagens” porque Diários de Otsoga mistura de forma inquietante aquilo que seria a própria experiência de vida naquele ambiente, a construção de uma narrativa ficcional e até mesmo registros que seriam tipicamente de bastidores. Vemos um filme ao mesmo tempo em que acompanhamos também a discussão sobre o próprio filme. Acompanhamos os personagens em tela e, em alguns momentos, também estão presentes o microfone, a câmera, o diretor, os roteiristas, os operadores. Assistimos à gravação e a própria dificuldade da sua execução quando, por exemplo, a luz solar se torna mais forte. Há, pois, ao mesmo tempo, o filme e o filme do filme. Nessa proposta, Carlotto Cotta interpreta “Carlotto”, assim como João Monteiro e Crista Alfaiate interpretam, respectivamente, “João” e “Crista”.

O caráter experimental e inquietante do longa provoca no espectador o desconforto e, por vezes, certa incompreensão. A mistura entre ficção e realidade é reforçada pela escassez dos diálogos; pelo uso exagerado e caótico das cores, impedindo que o espectador produza uma fácil associação dos seus significados. Tampouco é possível distinguir o que é, ou não, elemento diegético do longa.

Um aspecto, contudo, é bastante didático e chega a ser óbvio em sua construção: o processo pelo qual passa um fruto, caindo do pé, amadurecendo e apodrecendo. Embora ocupe apenas uma pequena parte da exibição, reside aqui um significado central para Diários de Otsoga. Em meio ao caos e à mudança profunda que a pandemia impôs à humanidade, a única certeza  que permanece fácil de ser apreendida na tela é a dinâmica da natureza. Essa segue inabalada, mantendo seus ciclos independentemente das vontades e dos modos de vida dos homens.

Nota

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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