Memória | 2021
Memória é o último longa do premiado cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul e seu primeiro fora da Tailândia. Indicado à Palma de Ouro em Cannes e estrelado por Tilda Swinton, Memória é ambientado em Bogotá, na Colômbia, e nos leva a acompanhar uma conexão transcendental entre a protagonista Jessica (Tilda Swinton) e Hernán (Juan Pablo Urrego e Elkin Díaz). O diretor, graduado em Arquitetura, mestrado em Belas Artes – Cinema pela School of Art Institute de Chicago, transita entre o cinema e as artes visuais. Ele já dirigiu mais de 47 filmes entre curtas, médias e longas-metragens, entre eles Mal dos Trópicos (2004), Síndromes e um Século (2006), Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (2010) e Cemitério do Esplendor (2015).
Apichatpong faz um cinema único, contemplativo, lento e profundo. Um slow cinema anti-hollywoodiano que exalta sempre a cultura local, a natureza e os aspectos humanos e místicos, um tanto exóticos para olhares ocidentais. Em Memória acordamos em um quarto escuro junto com a protagonista, ao ouvir um forte estrondo em meio ao silêncio do amanhecer. Jessica é uma escocesa que está de passagem em Bogotá, para visitar a irmã que está no hospital.
A partir desta manhã no apartamento emprestado de um amigo, Jessica ouviu o mesmo barulho mais algumas vezes, em locais e momentos distintos, o que a fez descartar a hipótese de que poderia ser uma obra do vizinho. Mas então o que seria? Algo da sua cabeça? Ela passa a tentar descobrir a origem do estrondo e encontra um jovem chamado Hernán (Juan Pablo Urrego), um técnico de som, em um estúdio de mixagem. Ele a ajuda a mapear e recriar esse ruído a partir de sua memória sonora. Eles passam algum tempo testando ruídos e Jessica parece por vezes em transe, em conexão emocional com cada detalhe daquele som.
A direção de Weerasethakul nos proporciona uma experiência sonora muito interessante em Memória. Tanto nos impactando com as rupturas abruptamente inesperadas dos estrondos ouvidos por Jessica – uma experiência que no cinema quase te tira da poltrona – quanto nos fazendo mergulhar nos momentos reflexivos de calmaria e silêncio, com o som ambiente em cenas da natureza, extremamente contemplativas. Estamos assistindo imagens no cinema, mas podemos também nos sentir em uma visita a um museu certas vezes, expandindo a experiência com os planos parados e um tanto demorados de Apichatpong, que nos faz apenas olhar e dar espaço aos pensamentos.
Após o primeiro contato, Hernán parece fascinado por Jessica, que está também em busca de uma estufa para conservar orquídeas para preveni-las de fungos, pois trabalha com comércio de flores. Em visita a uma loja, a vendedora indica um homem que vive em um vilarejo remoto que poderia ajudá-la. Hernán se oferece para levá-la até lá de carro. Jessica nunca mais o vê.
No dia seguinte, quando volta ao estúdio e ninguém parece conhecer Hernán, ela não o encontra, mas é completamente sugada pelo som de uma banda de jazz e nós, espectadores, sofremos o mesmo. Apichatpong nos dá um momento para acompanhar uma jam session experimental, depois de nos jogar no desespero de Jessica pelo repentino apagamento de Hernán, como um modo único de nos fazer digerir sensações.
“Porque você está chorando? Essas não são suas memórias”
Jessica segue seu caminho até o vilarejo e lá encontra um homem mais velho à beira de um rio, curiosamente também chamado de Hernán (Elkin Díaz). Ele conta a ela muitas histórias que não são suas, memórias compartilhadas, de outras vidas, de outras épocas. Será que todos nós não temos uma memória coletiva? Com que força nossas memórias mais importantes emocionariam a quem não fosse dono delas? Como uma parábola, eles trocam experiências enquanto Hernán limpa um pescado, Jessica sentada a seu lado, fala de sonhos, Hernán não sonha, faz do sono um desligamento da vida, sua morte e seu retorno.
Se Memória fala do sentido da vida, do universo e tudo mais, vai depender do espectador. O próprio diretor diz: “não adianta querer entender meus filmes”. É um filme que vai se transformar sempre e pra cada um. O olhar de Apichatpong nos retrata uma Colômbia escura, cheia de camadas atmosféricas, com cenas de forte chuva, denso nevoeiro em montanhas repletas de árvores. O que remete a uma jornada de desbravamento de Jessica em busca de um entendimento ainda disforme. Jessica é um canal que recebe, sente, escuta e se transforma. Como um espectador de um filme sendo mostrado, absorvendo-o.
Quando Jessica finalmente aceita sua condição de “antena”, é emocionante o momento que se permite sentir e absorver de sua conexão com Hernán, confundindo outra história com a sua própria. Me lembrou de quando ouvia meu pai costurar redes de pesca na varanda de casa, assobiando de longe, minha mãe arranhando fundo da panela na cozinha, a sensação de medo de ruídos ouvidos a noite. Sons afetivos que podem te transportar pra outro lugar, para além da sala escura cheia de estranhos. Por um momento esqueci estar ali e me senti deslocada no espaço-tempo. Essa é uma das forças de Memória.
Assistido a convite da MUBI e O2 Play Filmes.