Última Cidade | 2022
Última Cidade, primeiro longa-metragem de ficção dirigido pelo cearense Victor Furtado e estrelado por Júlio Adrião, tem o condão de, a partir de uma amálgama de referências e gêneros, fazer refletir sobre temáticas contemporâneas a partir de um cenário muito particular: um nordeste brasileiro distópico/pós-apocalíptico.
Com referências a Dom Quixote de la Mancha, o longa-metragem narra a epopeia de João e seu cavalo Cruzeiro que, expulsos de sua terra, buscam chegar na cidade grande. Em meio a uma narração em off e uma série de interessantes experimentalismos, o espectador acompanha esta saga de quem, alijado de seu lugar no mundo, busca, sem saber o que esperar, uma redenção para a dor do esbulho sofrido.
A saga de João não é solitária. Para além da companhia de Cruzeiro, encontra com diversos personagens pelo caminho: um grupo de jovens que estão saindo da cidade grande, com semblante abatido, que conta com uma mulher trans que aborda o protagonista por estar com fome e sede; Tahiel, um imigrante; em um bar, um grupo de apostadores, cujo personagem queer se destaca; indivíduos sem teto que ajudam João e Tahiel oferecendo-lhe abrigo em um imóvel abandonado.
Aqui, chama a atenção a caracterização de cada um desses personagens encontrados no meio do caminho, sobretudo por pertencerem, cada um, a grupos vulnerabilizados na contemporaneidade. Dentre estes personagens, destacam-se Tahiel, o imigrante, e os sem teto, cujas potentes falas dão um tom documental à obra. Em torno deles (e suas relevantes participações na trama) é construída uma dinâmica transpassada por uma ideia presente quase que na totalidade do filme: tudo o que pertence à Cidade Grande é hostil. E tem-se que, a partir daí, o filme ganha um rumo melhor definido.
Há uma construção em torno de uma cisão entre um Brasil “verdadeiro”; o chamado “Brasil profundo” e o ideário neoliberal, urbano, cujas relações de generosidade e afeto já se degradaram por completo. Esta lógica surge a partir de excelentes cenas como o roubo de cruzeiro por parte de motoqueiros, que representam a poluição e a violência das grandes metrópoles; a recusa das atendentes de um bar em fornecer, à João, o caminho à cidade grande (“Isso aqui eu não quero nem saber” – “é um outro mundo, bem diferente da nossa realidade”); e as narrativas dos personagens sem-teto, cujos relatos sobre o não deslumbramento com pontos turísticos visitados com a família na Itália e a falta de prazer ao trabalhar com caminhões e a predileção pelo trabalho manual, remetem a uma crença geral do que o verdadeiro é o que se retira da terra e do trabalho duro que ela exige, algo já desvirtuado pela racionalidade neoliberal que contaminou o dia-a-dia dos centros financeiros e das maiores cidades, ambientes encharcados de conluios, corrupção e perniciosas distrações.
Para João, em sua cruzada por este terreno hostil, o objetivo é não envergar, não ceder à reprodução de toda opressão gerada pelo dinheiro, pelas grandes corporações e pela violência urbana.
Estes personagens que surgem no caminho do protagonista, inteligentemente construídos enquanto representantes dos grupos vulnerabilizados já citados acima, tentam avisá-lo que a cidade grande não é um lugar que a eles pertence, pelo contrário, ela os marginaliza. A partir das suas experiências tentam dissuadi-lo, afinal, João, como eles, é filho de um país que torna sua vida desafiadora todos os dias.
Ao se aproximar do fim de sua jornada, João começa a enxergar as usinas de energia eólica, na mais explícita referência à Dom Quixote. Quanto mais se chega perto da cidade grande, mais o cenário fica hostil: João passa por altos muros com arame farpado, grades, grandes pedregulhos. Vê o mar dominado por grandes embarcações (uma delas denominada “Capital”) e pás mecânicas. Na cidade grande, que era da esfera do comum, tornou-se privado.
Já na cidade, João encontra-se com um sujeito engravatado que aguardava sua chegada. O local do encontro é uma imensa sala vazia, o que remete ao espectador a imagem do empobrecimento da linguagem neoliberal, estruturalmente violenta. Não à toa, ambos, antes do desenvolvimento de qualquer diálogo, passam a agredir-se fisicamente. Contudo, embora João faça muito esforço naquela luta corporal, o sujeito engravatado o domina com facilidade, enquanto ri e provoca. É a luta do marginal contra o sistema; do pobre versus o grande capital. Na tela, está retratada a desigualdade da sociedade brasileira forjada pela colonização, pelo genocídio e pela escravidão.
João perde a luta. O vencedor coloca seu pé sobre a cabeça do derrotado. Ao vencido, não resta outra alternativa a não ser se submeter. João engravata-se, passa a fazer parte da grande corporação imobiliária (impossível não recordar do brasileiro “O som ao redor” dirigido por Kleber Mendonça Filho) e torna-se uma peça daquela engrenagem responsável por despojar pessoas como ele de seu próprio lugar. João é o nosso Winston Smith nesta distopia brasileira.
Para se encaixar àquela realidade, o protagonista despe-se da sua indumentária, usa trajes sociais e muda até mesmo a forma de falar. Contudo, apesar de tanta mudança, trabalha ostentando no rosto, de forma literal, as feridas da luta corporal travada e perdida, simbolizando toda a sua difícil caminhada até ali. Para além de qualquer homogeneização pretendida nos tempos atuais, é sempre importante lembrar que há uma história por detrás de cada um.
“Última Cidade” ganhou o prêmio de Melhor Filme” no Festival de Cinema de Vitória no ano de 2021 e estreia no circuito comercial em 21 de julho, sendo distribuído pela Marrevolto Filmes.