Um Herói | 2021

Um Herói | 2021

É chamada “prisão civil” a sanção aplicada que visa obter o cumprimento de obrigações da mesma natureza. No Brasil, após adesão à Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) é medida excepcional autorizada tão somente nos casos de inadimplemento de obrigação alimentícia. O referido pacto foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992 e expressamente garante: “ninguém deve ser detido por dívida”. 

A garantia do não aprisionamento em razão de dívida nada mais é do que medida humanitária fundamental que valida o direito à liberdade pessoal. Na valoração moral comparativa entre o direito à liberdade e o cumprimento de obrigações financeiras, é indiscutível que o peso tenda para o primeiro valor. Sendo uma garantia já enraizada em nosso sistema jurídico, torna-se ainda mais espantosa a narrativa principal trazida pelo filme iraniano Um Herói, a extrema dificuldade do personagem Rahim (Amir Jadidi) em sair da prisão, onde cumpre sua pena pelo não pagamento de uma dívida.

Dirigido por Asghar Farhadi, também à frente dos aclamados O Apartamento (2016) e A Separação (2011), e vencedor do prêmio Grand Prix do Festival de Cannes de 2021, o longa não se preocupa em apontar culpados ou vilões, se interessando mais em mostrar uma engrenagem sistêmica e ininterrupta de discussões e ambiguidades morais num país que permite às pessoas fazer justiça com as próprias mãos, na medida em que o perdão ou o pagamento do credor é fator determinante para a soltura do aprisionado pela desonra de suas dívidas.

Rahim é um homem divorciado, pai de um menino pré-adolescente cuja criação foi relegada aos tios em razão da prisão de seu pai. Às escondidas, namora e pretende casar-se com Farkondeh (Sahar Goldust). Usufruindo de uma licença de dois dias, com a ajuda da namorada pretende obter a quitação de sua dívida mediante pagamento de um valor menor e o perdão do remanescente. A forma em que se daria a quitação é moralmente duvidosa: Farkondeh encontra uma bolsa de ouro por acaso e pretende vendê-la como se sua fosse. 

As dificuldades de Rahim são representadas com sutileza pelo diretor logo no início da projeção. Para encontrar o cunhado, trabalhador da construção civil (em monumentos da belíssima cidade de Shiraz), o personagem precisa subir uma infinidade de escadas, para logo descê-las novamente. Logo se percebe que nada virá fácil ao encarcerado, tal qual o mito de Sísifo.

“Gostaria de devolver o dinheiro sem ter que me humilhar.”

Sempre provocando o espectador a duvidar das intenções do protagonista, o diretor concede a Rahim uma rica personalidade dual. Transitando entre uma calmaria um tanto quanto irritante, que o mantém sempre com um meio sorriso no rosto, a momentos de agressividade, quando esgotado por seus problemas, é movido por uma benevolência que quiçá guarda uma intenção de proveito próprio: resolve devolver a bolsa de ouro ao seu desconhecido proprietário. Para tanto, deixa o número de telefone da prisão no estabelecimento bancário onde a bolsa foi encontrada. Apresenta-se, então, a proprietária da riqueza, que entra em contato com o número, tornando pública a boa ação do protagonista.

A partir daí, sem pressa e introduzindo tanto o personagem como o espectador em meio a uma bola de neve de acontecimentos que se sobrepõem e vão gerando consequências sempre mais penosas à Rahim, vemos sua condescendência se tornar assunto midiático e que faz dele um herói à opinião pública. Instituições de caridade, programas de TV e até os diretores do sistema prisional, todos buscam fazer de Rahim um exemplo a ser seguido, expondo sua história, seu filho (que apresenta dificuldades na fala e gaguez), cada qual extraindo proveito de alguma maneira, mas finalmente trazendo ao personagem um fio de esperança: a publicização de suas misérias e seu encarceramento desumano expõem também o credor da dívida, que se vê pressionado a perdoá-la e aceitar um valor inferior como pagamento. Uma possibilidade real da definitiva soltura de Rahim.

O lado do credor, que era fiador de Rahim, também nos é apresentado e atrai sensibilização. Trata-se de pessoa de conduta ilibada, honesta, comerciante, pai de uma moça cujo dote precisou ser vendido por culpa da dívida do protagonista. Há, de ambos os lados, a busca pela defesa da honra como pais e homens que são. O valor absoluto daquela sociedade, acima de qualquer outro valor, mostra-se como sendo a preservação da honra e, certamente, do patrimônio. A valoração deste último, diga-se, encontra-se acima de outros valores em muitas sociedades, a incluir a brasileira, que em seu Código Penal penaliza o crime de receptação de forma mais gravosa do que o cometido por quem manuseia de forma imprudente uma arma de fogo.

É igualmente questionável e provocador o espetáculo midiático que se forma ao redor de Rahim e seu filho. Movido pela empolgação da situação e atraído pela aparente saída fácil, o protagonista cai na armadilha dos ajustes que vai contando em sua história, ora por si próprio, ora orientado por terceiros duvidosamente interessados em de fato ajudá-lo. Vê-se que as pessoas que realmente se compadecem de Rahim são aquelas igualmente oprimidas por aquele sistema de aparências que exalta e faz cair na mesma medida.

Desvendar a multifacetada personalidade de Rahim não é a intenção do longa, mas é evidente sua representação da complexidade do ser humano que luta pela sobrevivência e que vivencia o sentimento de humilhação e injustiça. Julgá-lo é tentador, todos naquela sociedade o fazem. Mas o trabalho de humanização do personagem realizado por Asghar Farhadi, mesmo com todas as suas ambiguidades, é realmente louvável.

O filme estreia nos cinemas brasileiros no dia 28 de julho, e foi assistido via cabine a convite da Califórnia Filmes e da Sinny Assessoria.

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