Fé Corrompida | 2017

Fé Corrompida | 2017

“Deus irá nos perdoar pelo que fizemos com sua criação?”

Em meio ao silêncio, com um fade in lentíssimo, surge a silhueta de uma igreja. A proporção da tela é propositalmente claustrofóbica (4:3). O clima é cinza, invernal. São os créditos iniciais de Fé Corrompida, filme de Paul Schrader. A Igreja é a First Reformed, prestes a completar 250 anos de existência. Reverendo Ernst Toller é o responsável por ela. Logo percebemos que ambos são deslocados: o lugar parece mais um museu e o pastor seu guia turístico. Mas nem mesmo assim funciona, já que são poucos fiéis e menos ainda os turistas. Paira a melancolia e a solidão.

Quem conhece o Schrader roteirista de Taxi Driver (clássico dirigido por Martin Scorsese) sabe o quanto ele é hábil em retratar personagens solitários e niilistas. A companhia de Toller – e a nossa até o final do filme – é seu diário. As folhas do caderno passam a receber as confissões do religioso, suas angústias, o trauma da perda do filho e do casamento, as dores de estômago e, principalmente, o peso de seu discurso de fé. Um padre (ou um pastor como no filme) é o personagem que carrega consigo a responsabilidade de uma narrativa que se constrói como reveladora, transcendente, um caminho contra o caos. Mas e quando quem fala não encontra a si mesmo nessa relação divina? Como guiar suas ovelhas sob a mais densa névoa?

A primeira vez que escutamos a pergunta sobre o perdão de Deus aos homens é pela boca de Michael Mensana, ambientalista frustrado e suicida. É a ovelha desgarrada do rebanho. Toller, que pensava ser um bom pastor, vê despertar em si o mesmo dilema do outro: não nos resta mais muito em quê acreditar. Não é fácil manter a fé. Quem leva o reverendo até Michael é sua esposa, Mary, que está grávida e tenta convencer o marido a terem o filho por mais que o mundo seja terrível e o colapso ambiental iminente. No fundo ela é a pastora. É ela quem desperta as mais profundas emoções em Toller e em nós.

Um dos grandes méritos do filme é manter a presença de Mary em todas as cenas; não literalmente, mas no semblante do reverendo. Nesse ponto vale destacar as atuações de Ethan Hawke e Amanda Seyfried, talvez as maiores de suas carreiras até então. É como se o filme todo carregasse o espectro do encontro dos três, por mais curta que seja a cena. Os olhos são abertos para além da culpa de ter incentivado o filho a ir à guerra, para sua inércia e talvez insignificância no mundo, para falência do sistema e o desmoronamento de seus pilares. A fé é corrompida e o próprio homem a corrompeu. Agora Toller percebe-se como parte disso e compreende a indignação.

As escolhas de Schrader para contar essa história são de uma precisão ímpar, inclusive levando em consideração sua própria carreira como diretor. Reverendo Toller não chega a perder a fé em Deus, mas no homem. Seu conflito é com a instituição igreja. A utilização de pouquíssimos planos médios é a forma pela qual o cineasta evidencia isso: os planos mais abertos das igrejas são contrastados com os mais fechados dos rostos absortos pelo dilema. É a pressão dessa imensa instituição sobre o homem, o discurso de uma religião não mais pautada na pura crença, mas no capital. Mostra-se a suntuosidade da matriz Abundant Life, seu refeitório, seu imenso pé direito, seus inúmeros bancos, contra o rosto incrédulo do reverendo ao presenciar a rendição da igreja aos interesses políticos. O espaço vazio da casa de Toller rima com seu olhar. A sala dos Mensana é preenchida pela luz vinda da janela e se torna um espaço de revelação (tendo inclusive uma luminária com formato de olho ao lado do reverendo). Até mesmo a roupa clássica do pastor destoa da vestimenta de outros membros da igreja.

Também não é à toa que o diretor constrói sua narrativa sob o viés do protestantismo: a religião que nasce como oposição à corrupção do catolicismo apostólico romano. Tentativa falida. Em um dos diálogos mais importantes do filme, o pastor faz uma analogia à balança da vida entre o desespero e a esperança. Não é uma fala jogada ao vento, mas amarrada ao ritmo da narrativa. Vemos claramente a esperança pendendo para baixo e o desespero tomando conta do pastor, desde a conversa com Michael até seu desfecho. A esperança acaba assumindo uma outra forma no ato final do filme quando a superação do niilismo vem pelo amor do beijo. A transcendência no amor é a verdadeira fé.

Paul Schrader atualiza Bresson e Bergman em Fé Corrompida, um dos mais belos filmes dos últimos tempos. Ambos comungam as questões mais profundas sobre a fé e o silêncio de Deus; o primeiro com Diário de Um Pároco de Aldeia, o segundo com Luz de Inverno. É um grito de desolação em um momento, mas de esperança em outro. É um chamado para a verdadeira fé, aquela que não é cega e vendida. Cristão ou não, certamente todos nós saímos da sessão perguntando “o que é que estamos fazendo?”. Um tanto desesperados, outro tanto esperançosos, também silenciosos e solitários.

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