Não! Não Olhe! | 2022

Não! Não Olhe! | 2022

“Vocês sabiam que o homem que monta este cavalo é um homem negro? Sabem o nome dele?” Essa pergunta é feita por Emerald Haywood à equipe de filmagem no set onde um de seus cavalos é levado para um teste de TV. Ninguém ali saberia responder a questão referente à sequência de frames “The Horse in Motion” de Eadweard Muybridge, que deu origem à primeira imagem considerada cinematográfica, e que na trama foi protagonizada pelo tataravô de Emerald e OJ Haywood. Dessa forma Jordan Peele reafirma seu comprometimento com o cinema de representatividade.

Não! Não Olhe! é o terceiro longa de Peele, depois de “Corra!’ (2017)” e “Nós (2019)”. O protagonismo negro é mais uma vez posto como forma de resistência, através dos irmãos OJ e Emerald Haywood, interpretados por Daniel Kaluuya (“Corra!”, “Judas e o Messias Negro”) e Keke Palmer. A dupla funciona em perfeita harmonia nessa ousada trama de horror sci-fi que também traz uma reinvenção do western, proposta pelo diretor e roteirista americano.

 Uma chuva de objetos traça rasantes no céu do árido Vale de Santa Clarita, no sul da Califórnia, transformando pequenos itens em armas letais. Um deles acaba por atingir em cheio a cabeça de Otis, famoso domador de cavalos e dono do rancho Haywood. Com a morte de Otis os irmãos Haywood se tornam herdeiros do rancho onde o pai comercializava cavalos para a indústria cinematográfica. Eles pretendem dar continuidade aos negócios da família que passa por dificuldades financeiras. 

O céu está quase sempre à mostra em “Não! Não Olhe!”, seja em suaves degradês de pôr-do-sol no deserto ou em cinzas densos, escuros e tempestuosos. Filmado por ângulos inquietos, geralmente do ponto de vista dos personagens, em dramáticos contra plongées, faz um match perfeito com a tensão e o clima de horror também produzido pela trilha sonora no longa, que além de graves temas atmosféricos de suspense, utiliza canções clássicas de western spaghetti.

Ao lado do rancho está o ‘Chamado de Júpiter’, um parque temático baseado na história da Corrida do Ouro da Califórnia. Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun) é dono do parque e um ex-astro mirim marcado por um uma tragédia sangrenta que ocupou os noticiários na época e que o assombra até hoje. Um macaco astro de TV chamado Gordy surtou em cena e matou todos no set, deixando apenas o pequeno Jupe vivo. Um trauma posto, porém que não o paralisou. Jupe opta por explorar a situação financeiramente, criando um pequeno acervo sobre Gorgy, aberto à visitação. Além disso, ensaia um espetáculo que envolve a demonstração de cavalos para uma presença extraterrestre.

Peele se utiliza de uma estética western pós-moderna muito interessante, optando por planos abertos e o uso de cenas empoeiradas e nebulosas, com referências às fotografias clássicas do gênero e dignas de um filme estrelado por Clint Eastwood. Nesse caso, nosso cowboy-herói é OJ, outro um cowboy negro no cinema moderno, porém bem diferente do que vimos em “Django Livre (2013)” de Quentin Tarantino, por exemplo. Pela ótica de Peele, nosso herói não usa chapéu nem bota de couro, usa moletom e uma camiseta da banda Rage Against the Machine

Intrigados com os estranhos movimentos vindos do céu, OJ e Emerald decidem gravar os arredores do rancho para captar o que eles pensam ser um OVNI rondando a região. Eles contam que com a venda de imagens como esta, poderiam sanar todos os seus problemas financeiros e manter o rancho. Para isso recorrem à ajuda especializada de Angel Torres (Brandon Perea), funcionário da loja Fry’s Electronics. Ele instala câmeras por todo o rancho e passa a se interessar pelo fenômeno, se juntando aos irmãos Haywood na missão de captá-lo!  Há aqui um olhar atento de Peele sobre a sociedade do espetáculo, seus personagens estão sempre interessados no registro, no monitoramento e no compartilhamento de imagens para o público em troca de fama, dinheiro ou coisa que o valha.

 Os sons no longa são cheios de interferência, com graves intensos e ‘slow motions’ produzidos por alterações causadas pelo que inicialmente parecia ser uma nave, depois revela-se uma estranha criatura-nave metamorfa que provoca queda de energia e de qualquer sinal de antenas nos arredores, absorvendo pessoas e objetos como um gigante aspirador de pó. Um monstro alien como nunca se viu no cinema, Peele consegue ser inventivo e criativo, trazendo algo inédito dentro de um tema já tão explorado.

Impossibilitados de fazer essa captação na forma digital, OJ e Emerald pedem a ajuda do renomado cineasta Antlers Holst (Michael Wincott) para concluir a tarefa. Quando Holst abraça a ideia e se junta ao grupo com sua câmera analógica, para filmar tudo em película, Jordan Peele faz mais uma bela homenagem à sétima arte. O cineasta torna-se obcecado pela captação da imagem, trocando a própria vida pelo registro do ‘impossível’. Mas o que é impossível para o cinema?

Qual o limite entre fazer algo grandioso e extraordinário? Holst, assim como Peele, mostra estar mais interessado no extraordinário. Não só nisto, interessado demais no ato do registro. Curioso contraponto entre a inutilidade do digital no universo do filme, que se passa no tempo presente e a importância dada ao primitivo, à essência da captação como saída. Holst é levado ao extremo no risco que assume ao tentar fazer seu registro perfeito, mas ao contrário da motivação por fins financeiros de Emerald, a recompensa esperada por ele é puramente apaixonada e comprometida com sua ideologia.

Uma das cenas mais assustadoras envolve uma noite com torrencial chuva vermelha – como no remake de “A Morte do Demônio” (2013) dirigido por Fede Álvarez – que banha a velha casa de madeira branca dos Haywood, onde se abrigam Torres e Emerald.  Enquanto isso, OJ está do lado de fora, no carro, apavorado sob a tempestade e a criatura que flutua acima do veículo parecendo o provocar, como um animal selvagem que não quer ser domado. No rádio ouvimos, em tom macabro e distorcido pelas interferências, a frase do sucesso synthwave de Corey Hart: “I wear my sunglasses at night, so I can, so I can”.  Quando olhar é de fato o perigo, usar óculos escuros à noite começa a fazer muito sentido. A manhã chega e revela as manchas de sangue sob a casa, com os pequenos objetos cravados por todo lado, despejados mais uma vez como chuva pela criatura. 

Não! Não Olhe! consegue provocar bastante tensão, lembrando o tom de suspense usado por M. Night Shyamalan em “Sinais” (2002), quando extraterrestres rondavam a casa da família sem serem vistos, mas mesmo assim muito temidos! Peele também consegue trabalhar muito bem com o “não visto”, nos fazendo assumir o ponto de vista do protagonista, diversas vezes escondido e sem de fato poder olhar para o que está acontecendo à sua volta.

A trama evolui na saga implacável de domar um ser que parece indomável, numa terra de cowboys, onde a especialidade é domar animais. Os irmãos Haywood, que começam perdidos e não tão conectados um ao outro diante do luto da perda do pai, vão se unindo ao longo dessa missão de tomar as rédeas de uma criatura fantástica e de suas próprias vidas despedaçadas. Assim como em “Sinais” onde um trauma e uma situação inesperada reúne uma família quebrada pelo luto, Não! Não Olhe! faz o mesmo.

 Peele reafirma que está realmente no caminho certo em seu terceiro longa de terror, um horror bem fora do convencional em sua abordagem, que abraça outros gêneros cinematográficos sem se perder. O diretor nos apavora e encanta ao mesmo tempo, com muitas referências e homenagens ao cinema e sua militância. Como em seus trabalhos anteriores, Peele traz também aqui um elenco assertivo que sabe transitar muito bem entre a seriedade da trama e o alívio cômico característico em suas obras. 

Nota:

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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