Marte Um | 2022

Marte Um | 2022

O  cinema brasileiro, repleto de produções tão incríveis quanto pouco valorizadas, presencia agora o lançamento de mais uma de suas belas obras. Trata-se de Marte Um, longa dirigido por Gabriel Martins. O título faz menção ao projeto Mars One que planejava instalar uma colônia humana permanente no planeta vizinho. A temática aeroespacial, porém, é apenas um detalhe – ainda que fundamental – da trama que retrata uma família negra e periférica na cidade de Contagem (MG).

O longa nos apresenta a família Martins. Rapidamente compreendemos a dinâmica daquela casa e a rica construção dos personagens permite que conheçamos com profundidade traços da personalidade de cada um deles. Esse aspecto é de suma importância, pois prescinde de um único protagonista e permite que o espectador acompanhe o desenvolvimento da história sem se identificar apenas com um dos familiares. Escapa-se, assim, do risco de “vilanizar” qualquer um daqueles sujeitos.

A mãe, Tecia (Rejane Faria), é uma faxineira, diarista. Diante do aperto financeiro, aspecto que caracteriza também o cenário econômico brasileiro de forma mais ampla, comemora cada nova faxina obtida. É uma mulher que atravessa a cidade de ônibus para trabalhar em casas abastadas. Em seu próprio lar, exerce o papel de mediadora, buscando manter a harmonia e fazendo o possível para evitar conflitos familiares. Em seus momentos de lazer, conhecemos também a mulher que é torcedora do Cruzeiro, que curte um pagode com churrasco na laje e que também se diverte naquilo que parece ser um “bailão sertanejo”.

O marido, Welington (Carlos Francisco), trabalha em um condomínio de luxo onde é muito querido. Homem generoso, ajuda as pessoas sem maiores interesses, mesmo vivendo em situação financeira precária e sendo advertido sobre o quão baixo é o seu salário. Apaixonado pelo Cruzeiro, seu sonho é ver o filho jogando futebol profissional e para, isso, consegue ajuda de Sorín. Sim, Juan Pablo Sorín faz uma pequena participação no filme! Welington também é viciado em bebidas, mas está há vários anos sem beber e frequenta encontros dos alcoólicos anônimos. 

A filha mais velha, Eunice (Camila Souza), estuda Direito na Universidade Federal. Na Faculdade, a conhecemos com a blusa plotada “empieza el matriarcado”. Vemos como essa personagem vive conflitos típicos de quem está questionando as estruturas de poder que tradicionalmente organizam a sociedade. Cobrar a mãe para que o filho participe das tarefas domésticas, contrariar as expectativas estéticas predominantementes (como a depilação e o alisamento do cabelo) e brigar com os familiares para romper com a expectativa do casamento tradicional e assumir o seu relacionamento com outra mulher, Joana (Ana Hilário), são algumas de suas lutas. Embora cada um desses elementos surja em momentos diferentes da narrativa, não restam dúvidas de que Eunice representa a negação de toda a ordem tradicional. Em várias dimensões, ela é uma personagem transgressora!

Por fim, conhecemos o filho caçula, Deivinho (Cícero Lucas), um menino diferente dos demais garotos da sua rua e que tem grande apreço pelos estudos. Ele joga futebol – e joga bem! –, mas logo descobre que não é isso o que quer para sua vida. Contrariando as expectativas de seu pai, Deivinho quer ser astrofísico e participar do projeto Marte Um. Embora ainda seja bastante jovem e imaturo, seu drama guarda semelhanças com o de sua irmã. Ambos precisam negar o lugar que os pais – e a sociedade como um todo – esperam que eles, jovens negros, ocupem.

A partir dessa construção dos personagens somos capazes de compreender as motivações de todos eles. Os pais – adoráveis, mas também conservadores – replicam o que aprenderam com a vida. Os filhos, por sua vez, têm desejos e ambições que os pais não são capazes de acompanhar. Nesse sentido, é sintomático que Eunice e Deivinho, apesar da diferença de idade, tenham uma relação fraterna belíssima. A irmã tem dificuldade em revelar sua vida íntima para os pais, mas o irmão caçula é capaz de escutá-la. Por outro lado, Deivinho encontra na irmã alguém para ouvir e reconhecer seus desejos como válidos.

Afinal, por qual razão ele não poderia ser um astrofísico? Seu desejo expressa o sonho de um mundo diferente. E não é justamente o receio de que os jovens de hoje não sigam os mesmos passos dos adultos o grande temor dos conversadores? Pois Eunice parece saber disso. Quer que o irmão voe, construa seu caminho – mas isso envolve também aprender a lavar a louça, para não ser igual ao pai.

Ao mesmo tempo em que acompanhamos o diálogo entre os irmãos, a grande profundidade de campo utilizada em um cômodo pequeno passa ao espectador a sensação de claustrofobia e a exata noção do aperto que é aquele quarto pequeno sendo dividido por duas pessoas. Nada mais cabe ali além do beliche em que dormem, a cômoda pequena e uma escrivaninha ainda menor. Outro aspecto rico da construção do longa é o foco dado, em diferentes momentos, em apenas um dos membros da família. O uso do plano detalhe leva o espectador a se conectar com um personagem, mesmo que a cena envolva uma mesa de jantar em uma reunião de família.

O uso da trilha sonora também é muito eficiente, fazendo com que em diferentes momentos as músicas transitem com naturalidade do espaço diegético para o extradiegético. Ainda nesse quesito, é notável o modo como a música indica diferentes pontos da relação entre Eunice e Joana, indo do funk de Mc Carol no momento do encontro a Saigon, na voz de Emílio Santiago, no momento mais íntimo. Acertos técnicos como esses fazem com que a proposta de Gabriel Martins seja muito bem sucedida.

Digna de menção é também a construção da família de Joana. Uma cena breve é suficiente para compreendermos que há ali um outro contexto familiar, sem grandes privações materiais e de acolhimento à filha independentemente de sua orientação sexual. A diferença entre as famílias fica ainda mais evidente quando Joana vai conhecer a casa de Eunice e, em dia de clássico, chega com a camisa do Atlético Mineiro. Sua camisa preta e branca contrasta com o predomínio do azul e branco da casa de Eunice. A diferença nas cores e nas camisas dos clubes – profundas e facilmente reconhecidas pelo público iniciado no futebol da capital mineira – funciona bem como alegoria das muitas diferenças entre as famílias.

Diferentemente de filmes que tratam da questão racial abusando de estereótipos e enunciando explícita e exageradamente sua proposta, Marte Um aborda o assunto com delicadeza. A questão racial é tratada sem que seja necessário nenhum personagem tematizá-la diretamente, assim como também não são apresentados atos discriminatórios ou de injúria racial. Em uma aula de Eunice é apresentado o grande contingente carcerário brasileiro, mas mesmo aqui não há maior enfoque na questão racial. Essa abordagem não explícita e pouco convencional do tema não enfraquece, mas sim fortalece a sua mensagem.

Como em todo o restante da narrativa, o aspecto racial não é utilizado para diferenciar Joana: também sua família é negra. Assim, Marte Um escapa da saída simples de contrapor uma família negra e pobre a outra branca e rica. A naturalidade como traz quase todos os personagens como negros instiga reflexão. O estranhamento aqui deve ser atribuído ao nosso problemático costume de ver filmes protagonizados apenas por brancos. Afinal, somos um país de maioria negra! Mas, novamente, há aqui outra sutileza. O povo brasileiro é negro e também a médica que atende Técia no posto de saúde é negra, mas o cartaz que aparece ao fundo no consultório apresenta uma campanha de prevenção à AIDS somente com pessoas brancas. O detalhe parece querer revelar um país negro que ainda insiste em se enxergar – e se representar – como branco.

A riqueza da trama está também na capacidade de retratar, mesmo em um filme ficcional, detalhes do modo de vida do povo brasileiro. A cena do futebol amador feito com a câmera na mão, ao mesmo tempo em que alterna com as imagens dos espectadores no alambrado; o pastel frito no centro; o recurso à benzedeira depois de ir ao médico; a menção à inesquecível (ao menos para o torcedor cruzeirense) final da Sul-Minas e até a referência à farinha de “tiotió” (nome carinhoso dado à cidade de Teófilo Otoni, no nordeste do estado) são algumas das muitas construções delicadamente apresentadas por Gabriel Martins.

Em uma cena que faz lembrar o também belíssimo filme brasileiro Que horas ela volta? (Anna Muylaert), o colega de trabalho de Welington e também zelador do condomínio, Flávio (Russo Apr), protesta contra os baixos salários recebidos e diz a ele que seu desejo era dar um “tibum” na piscina do condomínio. Diferente do filme de Muylaert, porém, o desejo aqui não se tornará realidade. Será uma alegoria das diferenças desse Brasil agora sob o poder de Bolsonaro? Talvez. A temática é enunciada logo no primeiro ato por meio dos foguetes que festejam a eleição do novo Presidente. Foguetes e explosões, aliás, produzem uma bela rima que vale ser observada. 

Apesar de acompanharmos a eleição e a posse do atual Presidente brasileiro, não sabemos de forma explícita as opiniões políticas dos personagens. Mas, diante de tudo que conhecemos de suas personalidades, não é demais pensar que os conflitos no espaço intrafamiliar são também sintomáticos das disputas que atravessam o cenário político e social brasileiro. Não é à toa que Gabriel Martins focaliza em diferentes momentos a eleição e a posse do atual Presidente.

Assim, se é certo que os conflitos entre Eunice e Welington retratam brigas normais da esfera familiar, não parece exagero pensar que essa disputa representa, alegoricamente, aquela entre os que desejam acelerar as transformações na sociedade e os que temem a ruptura com as tradições. O mérito do filme, contudo, não está em produzir uma resposta definitiva sobre esses conflitos, mas em apresentá-los de tal modo que sejamos capazes de nos identificar com todos aqueles personagens, independentemente do que eles representem. 

O desfecho belíssimo reforça a importância dos vínculos afetivos, mas também a inevitabilidade das mudanças. Objetos antigos, sejam eles uma relíquia do avô ou a cadeira tradicional da família, seguirão presentes, mas servindo a novos ofícios e a novas formas de família. Talvez seja possível seguir amando aspectos desse passado, mas a única certeza que temos é de que o novo sempre virá.

Nota

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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