Aquilo que eu Nunca Perdi | 2022

Aquilo que eu Nunca Perdi | 2022

“Viajo pro sul deixando oeste

Lá quando chegar deixo meu frete

Isso quer dizer que meu norte é este

Norte fica ai bem junto a ti

Aquilo que eu nunca perdi”

Norte – Alzira E/Itamar Assumpção

Mulher que trocou a voz suave de outrora para cantar porrada (nas palavras dela mesma). Mulher, preta, mãe de 05 filhos, que deixou a cidade de Campo Grande com 04 deles para tentar viver de música em São Paulo. Mulher cuja família prova que arte também é coisa genética: Alzira E é Alzira Espíndola, irmã de Tetê, Celito, Jerry, Humberto e Sérgio, todos músicos, e mãe de Iara Rennó e Luz Marina, artistas e compositoras da MPB.

A trajetória musical e pessoal de Alzira E é reverenciada pela diretora Marina Thomé no documentário “Aquilo que eu nunca perdi”, que estreia nos cinemas brasileiros em 08 de setembro. A diretora acompanha a carreira da artista de forma muito próxima já há 15 anos, quando começou a fotografar seus shows.  

Há uma fluidez bela na forma como a diretora opta por nos apresentar os caminhos da cantora e compositora, conectando sua evolução/mutação (constante) ao curso de um rio – Alzira E é mulher rio, sua música é rio, que vai pegando coisas em seu percurso. O rio é, ainda, símbolo da ancestralidade da cantora, e a poesia documental de Marina Thomé atrela esses elementos a tudo que tornou a mulher/artista o que ela representa nos dias de hoje: a influência de sua família, da cidade em que nasceu e cresceu, a busca de um pertencimento em São Paulo, e a forte conexão com a natureza (especificamente, com a força brutal do Pantanal), tão presente em sua música.

Intercalando gravações do passado com o presente da cantora em estúdios e seu refúgio em São Paulo (uma espécie de sítio em meio ao concreto da cidade), a diretora parece tornar o ambiente bastante à vontade para que fluam conversas entre sua homenageada e as pessoas que circundam sua vida (irmãos, filhos, músicos e artistas que ela não faz questão de identificar com letreiros, o que pode prejudicar levemente a experiência). Seu êxito reside em mostrar Alzira E não só como uma artista em evolução, mas como uma mulher em constante descoberta, que luta contra o patriarcado e reconhece ter sido vítima de abusos durante sua vida, falando sobre as dores do passado de forma muito bem resolvida.

O tom psicodélico de seus shows é aproveitado pela diretora e atribui um caráter ainda mais revolucionário e subversivo à cantora. Se a sociedade espera que uma mulher de 64 anos perca sua força de forma gradativa, Alzira E faz o contrário. Se quando jovem ela não se maquiava, hoje, com seus belíssimos cabelos crespos trançados e grisalhos, faz questão de pintar somente um olho. Numa conversa deliciosa de se ouvir, debate com sua irmã Tetê as falácias contadas a respeito da menopausa: o tesão não se perde, mas aumenta porque é mais rico e se mistura com o tesão pela vida. Se há a expectativa de que ela traga suavidade às suas músicas, ela se opõe, trazendo aos palcos toda força do blues psicodélico, no qual ela imerge de corpo e alma. E essa força é dela. Não há esforço para captá-la, apenas naturalidade.

Se perdendo um pouco em algumas exposições que parecem forçar conexões e referências, o longa de Marina Thomé é uma obra bela, forte e necessária, não somente para relembrar a potência de Alzira E como artista, mas para também mostrar como o amadurecimento é uma dádiva, dádiva essa que a cantora e poetisa, tão matematicamente exata e precisa, sabe muito bem aproveitar.

“Aquilo que eu nunca perdi”, vencedor do Festival IN-EDIT Brasil de 2021, estreia nos cinemas em 08 de setembro, e é produzido pelo Estúdio CRUA e distribuído pela Descoloniza Filmes.

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