“A Mulher Rei” e a urgência de reescrever a história sob o ponto de vista africano – coletiva de imprensa com Viola Davis

Viola Davis é uma mulher coroada. Já foi considerada pela Times como uma das 100 pessoas mais influentes do planeta por duas vezes. Carrega a Tríplice Coroa da Atuação, uma seleta lista de 24 pessoas que venceram os prêmios Oscar, Emmy e Tony. No Brasil para divulgar “A Mulher Rei”, filme por ela estrelado e produzido, a atriz mostra que seu compromisso com o cinema vai muito além das premiações: contar histórias negras, e, principalmente, histórias de mulheres negras nas telas hollywoodianas, é o que a move.
Fomos convidados pela Sony Pictures e pela Primeiro Plano a participar da única coletiva de imprensa no Brasil com a presença da atriz e seu marido e produtor do filme, Julius Tennon, que aconteceu em 19 de setembro, no Rio de Janeiro, no hotel Copacabana Palace. Sua presença no Brasil e a escolha do país para falar sobre “A Mulher Rei” não foi despropositada. A atriz, depois de tecer elogios à culinária, ao povo e às paisagens naturais do Rio de Janeiro que tanto impressionam, destacou que sentiu em nossa terra um amor que é o oposto do que ela costuma receber.
A fala de Viola Davis é potente, e ela usa dessa força com consciência política e social quanto ao papel que ela desempenha na indústria Hollywoodiana, e via de consequência, no cinema mundial. Se recusando a limitar e rotular “A Mulher Rei” como um filme de ação, Viola conta que a produção do longa a fez perceber a conexão misteriosa que há entre todas as pessoas negras das mais diversas partes do mundo, principalmente, do Brasil (que foi, inclusive, o país que mais recebeu pessoas escravizadas de Daomé, onde se passa o filme): há um lugar que nos conecta, uma fonte única da qual viemos, que é o continente africano, berço do mundo. A ideia de conexão está, segundo a atriz, muito presente na narrativa do filme.

“A Mulher Rei” conta uma história ficcional baseada em fatos reais, na força de uma elite de guerreiras chamadas Agojie, um exército exclusivamente feminino que protegia o Reino Africano de Daomé no século 19, local onde hoje está situado o Benin. Assim como a maior parte de nós, a primeira vez que a atriz soube da existência das Agojie foi através da produção do filme. Viola narra que o trabalho de pesquisas, iniciado em 2018, sobre o Reino de Daomé e seu exército feminino foram muito intensas, porém, a maioria do acervo encontrado, além de escasso, é uma descrição europeia de acontecimentos, exigindo da equipe um esforço para separar o que era a visão colonizadora e o que era uma narrativa confiável de fatos. As Agojie foram genericamente denominadas pelo colonizador francês de Amazonas, e Viola reforça o exercício constante que fez, e ainda faz, de não utilizar a nomenclatura europeia e chamar as guerreiras por seu nome original.
Percebe-se, pela fala de Viola e Julius, que a união de pessoas comprometidas com a importância de mudar o viés e o padrão colonizador e branco das produções e narrativas de Hollywood é que tornou esse projeto possível. A diretora do filme, Gina Prince-Bythewood, é uma mulher negra. O filme é roteirizado por uma mulher, Dana Stevens. Ao mesmo tempo que, segundo Julius, as telas dos cinemas mostrarão mulheres negras em toda sua complexidade, diversidades étnica e física, tons de pele e belezas diversas, em conexão e ajuda mútua, fora das telas, a sororidade foi igualmente necessária para o crescimento do projeto.

A mudança no padrão de beleza é também o mote de Viola como artista. Mostrando-se mais uma vez extremamente consciente da importância de sua figura como uma mulher negra de pele escura, protagonista de uma produção gigantesca de Hollywood, ela conta que a complexidade do que é ser essa mulher a motiva. Viola passou 10 anos estudando para ser atriz e sempre fez, como ela mesma conta, papéis clássicos atribuídos às mulheres negras no cinema: mulheres sem nomes, com poucas falas ou fala alguma, mães que choram por seus filhos assassinados – todas são colocadas numa caixa limitada de papéis. Não havia, até então, interesse em contar histórias sobre mulheres negras como de fato elas são, complexas e vastas, humanas. “E aqui estou eu mudando a imagem do que é ser mulher, ser bonita. E eu nunca achei que eu me encaixava”, refere.
Viola expressa, ainda, a dificuldade de encontrar informações sobre as atrizes negras que vemos nas telas: “Eu estou cansada disso. Eu sei, na minha vida, quem essas mulheres são. E elas são vastas, são complicadas, e aí está a beleza”. Reforça, ainda, sua fala sobre a falta de oportunidades para que artistas negras contem histórias que lhes dizem respeito, colocando o incentivo a essas narrativas como um forte instrumento de combate ao racismo. Viola narra que já ouviu os dizeres “Você sabe que não é bonita, certo?”, sem qualquer contexto ou justificativa: “Eles falam o que você não é com impunidade”.
A esperança compartilhada por Viola e Julius (e pessoalmente, por mim, com muita força) é que esse filme abra portas para que mais histórias negras, especialmente sobre mulheres negras, sejam contadas. De fato, a necessidade de reescrever a história do colonizador, de contar histórias como essas, nunca contadas, é urgente. “Tudo começa com algo espetacular. E esse filme é muito espetacular”, afirma Julius, relembrando que para que essa abertura aconteça, tais filmes precisam fazer dinheiro. De fato, a linguagem do dinheiro é a única conhecida por Hollywood. E saber que há pessoas como Viola e Julius frente a essa indústria, investindo suas carreiras e objetivo de vida em prol da visibilidade das histórias e pessoas negras é um fio forte de energia que precisa ser mantido. Reescrevamos a história, então! Assistamos “A Mulher Rei” nos cinemas e façamos disso um ato político!