As 4 formas do Niilismo em 4 filmes

As 4 formas do Niilismo em 4 filmes

O niilismo ganhou popularidade em nosso tempo, inclusive entre o senso comum. Muito disso se deve ao célebre pensador alemão Friedrich Nietzsche e ao literato russo Fiódor Dostoiévski, ambos abordaram o tema, cada um à sua forma. O escritor fez de seus personagens a imagem do homem niilista, desiludido e sem um horizonte moral para nortear suas ações. Raskólnikov, do livro Crime e Castigo, é, talvez, o exemplo mais conhecido. Seu ato criminoso é reflexo de uma vida sem sentido, banal, que se tornaria extraordinária (nas palavras de Raskólnikov) pelo assassinato de duas mulheres, algo que o colocaria acima dos valores de bem e de mal. Mas o peso da moralidade se prova gigantesco, dando ao criminoso o castigo da culpa que o corrói. Portanto, para Dostoiévski, o niilismo é o fracasso humano na tentativa da superação de si e a evidência de que necessitaríamos do suporte moral para nossas vidas.

Nietzsche, admirador do escritor russo, também recorreu à literatura para explorar o conceito. Um de seus livros mais célebres é Assim Falou Zaratustra, que também ilustra um sujeito que se percebe em um dilema moral. Para o personagem título, o mundo não é mais digno de ser vivido, então o mais fácil seria se isolar em uma montanha. O isolamento se torna uma epifania e é no cume que Zaratustra descobre a fórmula para a transcendência do homem. Sua tarefa é se tornar profeta da palavra do “super-homem”, receita para nos tornarmos capazes de superar a reprodução moralista e assumirmos a vontade de potência, a criação de si mesmo.

A popularidade dos aforismos de Nietzsche acabou contribuindo para uma compreensão equivocada da sua abordagem sobre o niilismo. Muitos o colocam como um dos mais pessimistas filósofos da história; outros acabaram utilizando suas ideias para fins opressores, como foi o caso de sua própria irmã, que associou seu conceito ao antissemitismo e ao racismo. A verdade é que Nietzsche é um dos pensadores que mais afirmam a vida e o ser humano. Mas é necessário reconhecer que o niilismo precisa ser superado. Portanto, o filósofo não é um niilista, mas um médico que dá o diagnóstico à humanidade: estamos moralmente doentes e essa doença é o niilismo. Aprendemos que a vida é a negação da própria vida em prol de valores forjados pelo próprio homem ao longo da história. A moral nada mais é do que um limitador ao desejo. Reprimimos quem realmente somos para atendermos as demandas sociais.

Se olharmos o niilismo nietzschiano pela ótica do filósofo francês Gilles Deleuze, confirmaremos essa versão. Deleuze identifica na filosofia de Nietzsche quatro formas do niilismo: a negativa, a reativa, a passiva e a ativa. O niilista é aquele que nega a vida por não a suportar como ela é. Ele precisa criar suportes para ordenar o caos da existência. Ele é o acusador moralista que não aceita os desvios de uma ordem pré-estabelecida porque é muito apegado a ela. Há uma inversão de valores onde o ser humano não cria, mas apenas reproduz. Esvai-se a potência de ser. Mas, além de diagnosticar o problema, Nietzsche aponta a cura, de acordo com Deleuze. Quando chegamos ao niilismo ativo alcançamos a negação da negação, ou seja, uma afirmação! É possível implodir o niilismo!

A partir da leitura deleuziana da filosofia de Nietzsche, a lista que montamos aqui não tem um objetivo definitivo ou pedagógico, mas visa elencar filmes que de alguma forma expõem os quatro tipos de niilismos reconhecidos por Deleuze. Em algum momento são personagens que carregam em si a doença moral, em outros o enredo nos revela um ou outro tipo de niilismo. O que queremos é instigar o leitor e espectador a se aprofundar sobre o tema a partir do sentimento despertado pela sétima arte. Os filmes não devem servir como um fim ou uma ilustração, mas como um ponto de partida e um sentimento para que dele possamos afirmar nossa vontade de potência.

1. Niilismo negativo

O niilismo negativo parte de um idealismo que nos acompanha desde o platonismo na Grécia Antiga. Quando Platão divide o mundo em dois e dá um valor maior ao ideal em detrimento do sensível, passamos a viver em busca de uma perfeição inexistente. Criamos um outro mundo para suportar este. Com o cristianismo essa visão seria massificada, como diz o próprio Nietzsche (“o cristianismo é o platonismo para as massas”). Popularizou-se uma vida niilista, onde o nada é elevado a uma divindade: preenchemos o vazio com um deus. O mundo sensível se torna o antro do pecado e a redenção viria por meio da religião que nos colocaria no reino dos céus. Novamente tiramos a potência da vida real para esperar um além-vida. É a moral do ressentimento.

  • Dias de Ira (Carl Theodor Dreyer, 1943)

O ressentimento é a base do cristianismo. Para Nietzsche, a moral cristã parte do idealismo platônico para popularizar o sentimento de culpa. Nessa concepção existe algo ou um lugar que é perfeito e nos é negado por sermos pecadores. Nossa alma precisa ser redimida, pois nossos desejos são impuros e indignos de uma morada sagrada ao lado de Deus. Então, o Homem Ocidental “aprendeu” a reprimir suas paixões. Esse é um dos temas mais recorrentes nas obras do cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer, como em seu grande clássico A Paixão de Joana D’Arc

Talvez Dias de Ira não seja tão conhecido como seu clássico, mas aqui está um bom exemplo de como se dá o conflito entre desejo e religião. No contexto do século XVII na Dinamarca, a caça às bruxas é o pano de fundo da história. Anne é forçada a se casar com o reverendo Absalon. Ela é jovem e cheia de vida; ele já um senhor que tem um filho, Martin, mais novo que a própria madrasta. Quando Martin chega de uma viagem ele e Anne se apaixonam e passam a viver um romance proibido. A partir daqui temos o evidente conflito entre o desejo e a fé. 

A vida de Anne era a própria negação de si para atender às ordens do cristianismo. O amor verdadeiro é reprimido. A repressão é tão grande que quando o romance é descoberto logo os olhares se voltam para Anne e a julgam como bruxa. Somente a bruxaria faria uma jovem desprezar o casamento para amar o filho do esposo. A potência da vida se perde no niilismo. Dreyer questiona a verdadeira fé, assim como Nietzsche. No que se transformou a fé quando foi institucionalizada? Eis o niilismo negativo.

Assista ao filme completo e legendado aqui.

2. Niilismo reativo

Quando chegamos ao Século das Luzes, matamos Deus. É no niilismo reativo que está a famosa e polêmica afirmação de Nietzsche: “Deus está morto!” Quem o matou? O próprio homem. A secularização é uma característica da modernidade. O Deus cristão é retirado do trono da verdade, porém, o Homem Ocidental toma seu lugar. No Iluminismo, a ideia de que a ciência e os valores do Homem são invioláveis cria um novo tipo de suporte para a vida real. Não se trata mais do caminho sagrado para a redenção da alma, pois o método científico se tornou a nova bíblia. Uma ditadura da verdade! Passamos a crer na metafísica do futuro, na utopia, num ideal não mais nos termos de Platão ou do cristianismo, mas da Ciência. Reagimos, mas caímos em nosso próprio ego.

  •  Alphaville (Jean-Luc Godard, 1965)

Nietzsche utiliza da referência mitológica grega para escrever sobre os dois lados da vida: um dionisíaco e outro apolíneo. Apolo representa a ordem, a razão e o controle. Já Dionísio é o deus das pulsões, da embriaguez. A moral está sempre ligada ao que é apolíneo, pois se trata de uma construção repressora dos desejos. Portanto, o Apolo de nossas almas sempre acaba sendo recalcado no inconsciente nos causando as mais diversas neuroses. 

Quando Godard faz sua distopia em Alphaville é justamente para mostrar a repressão dos desejos em prol da ciência. O Homem Ocidental se coroou como a grande verdade da vida, a pura racionalidade. Na cidade de Alphaville quem controla é o computador Alpha 60, que aboliu todo e qualquer resquício de Dionísio. Não são permitidos sentimentos, pois devemos ser unicamente razão. As pessoas agora são autômatas que devem responder à técnica. Em Alphaville as individualidades se perdem para uma massa intelectual. Apolo reina sobre os escombros medievais erguendo os pilares do antropocentrismo.

Assista ao trailer aqui.

3. Niilismo passivo

A Ciência não nos deu todas as respostas. O que fazemos? Todos os pilares se esfarelaram. Nem ateus, nem cientistas. No niilismo passivo nossa potência chega a zero. Entramos em um estado de indiferença diante da vida e acreditamos que nenhuma ação fará a diferença. Andamos como zumbis acoplados a nossos aparelhos celulares, redes sociais e outras máscaras. Nada vale a pena, não há força para mais nada. Tudo foi tomado por uma escuridão da qual não queremos mais sair. Nesse tipo de niilismo Nietzsche escarnece do Homem Ocidental: ele até se afirma, mas de modo falso. Aceita tudo porque quer o nada. Estamos totalmente entorpecidos.

  •  Danação (Béla Tarr, 1987)

O filme de Béla Tarr comumente associado ao niilismo é O Cavalo de Turim, justamente por ter uma referência clara a Friedrich Nietzsche e a lenda em torno de sua insanidade. É possível afirmar que toda obra do diretor húngaro é permeada pelo clima niilista, o que a torna de difícil acesso, haja vista a densidade filosófica que insere em seus filmes. Danação marca o início de um estilo que se tornaria peculiar de Tarr, um cinema lento, quase sem falas, preto e branco e cheio de desesperança. O que nos faz escolher este filme e não aquele é a presença do tom apocalíptico que afeta uma coletividade, não se restringindo a dois personagens, como em O Cavalo de Turim. Aqui, Kerrer é o movente da história, mas que a todo tempo é atravessada por novos rostos de figuras paralisadas pela inércia niilista.

O niilismo passivo é o entorpecimento. A falta de sentido esvazia a vida de tal forma que nos entregamos aos impulsos mais inexplicáveis. Os parâmetros morais são perdidos porque nada mais importa. Passar o tempo entregue ao nada é o que nos resta. Assim são as pessoas do vilarejo retratado em Danação. Os humanos ali são tão mortos quanto os ambientes retratados pelo cineasta. “Está tudo acabado”, canta a mulher no Titanik Bar. Estão todos entregues à sua própria maldição, ao fim iminente, à desilusão. É a angustiante condição humana. Não há ciência nem mesmo Deus a quem se agarrar. 

Assista ao trailer aqui.

4. Niilismo ativo

Por fim, a implosão! Nietzsche afirma que é possível reverter esse quadro a partir do próprio niilismo. Quando tomamos consciência de nossa doença, podemos caminhar para a cura. O niilismo somente se torna ativo quando negamos a própria negação: de dois sinais negativos nasce um positivo. Se nascemos em um mundo recheado de moralismo não significa que devemos reproduzi-lo. É muito melhor que sejamos criativos! O único valor real é o que criamos por nós mesmos. Retomamos uma potência perdida para que ultrapassemos quaisquer definições alheias. Não nos definimos porque somos puro desejo pulsante. Chega de repressão e ressentimento! No niilismo ativo transvaloram-se os valores, criam-se super-homens.

  • Frances Ha (Noah Baumbach, 2012)

Um filme da fase ativa do niilismo deve ser aquele em que o espectador termina a sessão com um novo fôlego, pronto para ver a vida por outro ângulo. É o caso de Frances Ha. A história é muito simples: Frances tem 27 anos e passa por uma crise identitária. O apego a um relacionamento idealista com sua melhor amiga, Sophie, faz da personagem uma mistura entre a ingenuidade da adolescência e as exigências da vida adulta. Ela ainda é jovem, mas, ao mesmo tempo, lida com a angústia e a frustração por não ter conquistado “nada” até então. A situação piora quando Frances vê Sophie assumir um novo tipo de vínculo, a criação de uma família, o matrimônio. Toda sua utopia se dissolve em uma sequência de quebras de expectativas e choques de “realidade”. As demandas do “ser adulta” são o peso sobre a identidade de Frances. Sua energia tão vibrante no começo do filme é abalada pelo moralismo que impõe formas de existir incompatíveis com sua personalidade. Poderia ser o momento de sucumbir ao niilismo, não fosse sua reversão. Frances transvalora. Foi necessário olhar para si mesma para se refazer na sua forma mais potente. 

Quando o filme acaba, temos uma Frances que se reencontra com sua identidade. A agora Frances Ha é a super-mulher que se tornou artista, a forma de vida mais digna na concepção nietzschiana. Suas perdas se convertem em dança.  Há uma ressignificação das relações e uma tomada de consciência da vida e suas estruturas. Ela desce a montanha, assim como Zaratustra, para dar um novo valor à vida e transmitir sua mensagem a partir da arte. Nós, espectadores afetados, temos a oportunidade de perceber a vida criativa e não mais reprodutiva: talvez seja esse o principal sentimento para negarmos a negação, curarmos o niilismo.

Assista ao trailer aqui.

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