O Livro dos Prazeres | 2020

O Livro dos Prazeres | 2020

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres foi escrito por Clarice Lispector e lançado em 1969 e, por certo, é uma das obras mais conhecidas e aclamadas da escritora brasileira nascida na Ucrânia. Este foi o tamanho do desafio de Marcela Lordy ao dirigir a adaptação do livro para o cinema, sobretudo por transpor um texto de 1969 para uma realidade contemporânea. Estrelado por Simone Spoladore, “O Livro dos Prazeres” estreia no Brasil dia 22 de setembro deste ano, por mais que já tivesse sido exibido em festivais e mostras de cinema desde o ano de 2020.  

O filme aborda a vida de Loreley (apelidada de Lóri), personagem complexa que, nascida em família abastada, tenta isolar-se para fugir “da dor de existir”. A primeira metade do longa-metragem trata, mais vigorosamente, de estabelecer essa composição: o apartamento enorme e vazio em frente a praia; a ausência de diálogos da protagonista (que só se estabelece depois de dez minutos de projeção) e o enfoque em tarefas ordinárias do seu dia-a-dia que atribuem mais relevância ao aspecto solitário e reservado da personagem. 

A diretora é extremamente competente em utilizar elementos ao mesmo tempo “simples” e muito eficientes para alcançar o seu objetivo. Dentre eles, destaca-se o constante uso de espelhos refletindo a imagem de Lóri, trazendo a ideia de que apenas ela a cerca e é a sua mais contumaz companhia, reforçando a noção de isolamento da personagem; bem como destaca-se o bom trabalho de figurino do filme, em trazer a Lóri, em várias cenas, utilizando roupas íntimas/roupas que se utiliza em casa, reforçando a essência intimista que permeia o filme e estabelecendo uma maior conexão do espectador com aquela rotina/realidade.

A atriz Simone Spoladore faz um trabalho soberbo, sobretudo nas cenas em que está sozinha na tela. As demais atuações no longa, como a de Javier Drolas (que interpreta Ulisses de forma irritantemente inânime) e Felipe Rocha, não chegam perto da potência desempenhada pela atriz brasileira, cuja presença marcante eleva o filme a um outro nível.

 Lóri compreende a sua predileção ao isolamento, ainda que ele seja muito mais sentimental/afetivo do que físico, o que fica claro com as não poucas cenas de sexo no filme, que destacam-se pelo seu realismo que denota, ainda hoje, uma boa dose de coragem da cineasta brasileira. Os personagens masculinos que a cercam, como o irmão, affair/colega de trabalho e vizinho, todos se comportam de forma machista e invasiva, como se a postura de Lóri fosse permissiva a uma intromissão em sua vida. A partir destes comportamentos, o filme também sugere que há um certo receio da personagem em reproduzir, não necessariamente o comportamento machista, mas um comportamento opressor atrelado a sua abastada condição econômica e social. 

O espectador acompanha o processo de “abertura” de Lóri, uma transformação que afeta todos os aspectos de sua vida, o que não implica em dizer que ela está fazendo “o que deve ser feito”, mas sim, o que ela quer e se sente livre a fazer. A personagem gosta da água, mas nunca entrou no mar. Possui um grande afeto pelas crianças que são suas alunas, mas não está aberta a um convívio mais alongado com elas. Marcela Lordy cria uma atmosfera que gera compreensão e é inacessível a cínicos moralismos, o que é reforçado pelas já citadas cenas de sexo e na sóbria representação da bissexualidade de Lóri e Ulisses. 

A transformação da personagem principal perpassa pela ideia de que é impossível fugir da dor de existir. Em uma poderosa fala, emulando ser de uma amiga a sua própria história, diz que “ela descobriu que a gente não pode cortar a dor / porque senão a gente sofre o tempo inteiro”. A partir desta tomada de consciência, decide livrar-se: na alvorada, decide tomar banho de mar, aquele mar tão próximo de sua casa, verdadeira testemunha de seu isolamento, bem como decide entregar-se à relação com Ulisses, afinal, em certas circunstâncias, é necessário percorrer um grande caminho até chegar no início.  E como o livro, o filme termina com um : .  

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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