Mutzenbacher | 2022

Mutzenbacher | 2022

O romance Josefine Mutzenbacher ou a História de uma Prostituta Vienense é uma obra literária austríaca publicada em 1906 de forma anônima. Trata-se de um texto pornográfico que narra, sob a perspectiva feminina, a vida sexual da personagem título, desde a infância (sim, desde a infância, aos 5 anos) até a vida adulta. A obra, que permaneceu banida até o início dos anos 60, é igualmente aclamada por sua importância literária e condenada por naturalizar o incesto, a sexualidade infantil e a violência contra a mulher, temas todos tratados como proporcionadores do prazer da mulher protagonista.

Por muitos anos, atribuiu-se a autoria do romance à própria Josefine, como narradora de sua própria sexualidade. A suposta autoria feminina tornou possível a observação da obra como “libertadora”, pois seria o ponto de vista da própria mulher sobre o prazer sexual feminino. Entretanto, recentemente, a autoria da obra foi atribuída ao escritor Felix Salten, autor de Bambi (exatamente, o clássico infantil adaptado pela Disney). Ainda que seja controversa a criação, fato é que sua escrita por um homem evidencia todo o fetichismo de seu teor.

A proposta da diretora do documentário Mutzenbacher, Ruth Beckermann, é audaz. Através de um anúncio de jornal, requisita homens de 16 a 99 anos para um teste de elenco para um suposto filme baseado no romance erótico. Num amplo armazém, cuja única mobília destacada é um sofá rosado com estampa floral (clara referência aos “testes de sofá aos quais mulheres foram submetidas durante toda a história do cinema), ela recebe os candidatos e os confronta com a leitura dos excertos mais polêmicos e explícitos da obra literária.

Muito embora não haja, por parte da direção, qualquer julgamento quanto à reação e relação daquela centena de homens com o documento erótico, o efeito que se extrai de tal confronto é, no mínimo, muito incômodo. Em sendo uma obra austríaca, a maioria dos candidatos conhecia, mesmo que por alto, o teor da narrativa literária.

Há, no geral, um ambiente bem-humorado na leitura do texto, uma leveza talvez proporcionada pela própria condução natural da diretora e sua disposição para ouvir aqueles homens, sem imposição de qualquer tipo de tabu. Seu papel, entretanto, apesar de se colocar num lugar de não julgamento, não é imparcial. Em sendo mulher a dirigir centenas de homens à uma leitura erótica extremamente controversa, ela provoca e expõe moralismos, fantasias masculinas, misoginia e violência.

Muito embora tenhamos, através do documentário, contato com a obra literária apenas nos trechos destacados pela diretora, é perceptível que há uma ampla e polêmica discussão quanto à leitura da obra como uma exaltação ao prazer sexual feminino e como uma expressa fantasia masculina que naturaliza um lugar servil de mulheres e crianças, de forma claramente criminosa, em prol da sexualidade masculina. E as reações dos homens postos sob análise pela diretora são as mais diversas.

Houve quem interpretasse, dentre os candidatos, o incesto como algo natural da sexualidade. Houve quem, mediante falso moralismo, dissesse que o tipo de fantasia exposta no texto erótico só seria praticável com a esposa. Repulsas ao texto foram reveladas. Foram entrevistados homens sexualmente experientes e jovens incapazes de pronunciar a palavra “masturbação”. Fantasias sexuais masculinas infantis foram expostas. Houve, ainda, quem colocasse o fator da idade da parceira sexual apenas como um impeditivo legalmente imposto tão somente para “evitar problemas”. Surgiram defensores da “feminilidade tóxica”, que seria praticada pela personagem título com os homens. Mutzenbacher mostra-se capaz de induzir profunda análise da psicologia sexual masculina. É significativo que a obra literária tenha sido publicada na mesma época que Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud.

Assistir uma centena de homens pronunciando, em conjunto, sob o comando de uma mulher, trechos da obra erótica de mais de 100 anos, que revela muito sobre a própria masculinidade e provoca clara relação entre as fantasias eróticas masculinas e a naturalização da violência contra mulher, produz um efeito intenso no espectador. É uma clara inversão proposital de poderes. Quiçá o resultado dessa provocação fosse mais poderoso se o documentário revelasse um pouco mais sobre os pensamentos da diretora sobre o assunto.

Mutzenbacher foi assistido em cabine de imprensa da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e fará parte do circuito do evento.

Nota

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