Alma Viva | 2022
Alma Viva é um filme extremamente feminino. E essa não é, nem de longe, uma atribuição limitativa. Não reflete, tampouco, tão somente o fato de ser dirigido por uma mulher, a diretora franco-portuguesa Cristèle Alves Meira. Fato é que a obra carrega elementos originários complexos e extremamente profundos de ancestralidade e legado feminino, de transmissão de saberes e misticismo, de conexão entre mulheres, e dos meios de confronto de uma sociedade insistentemente patriarcal e permeada de tabus que continua lhes atribuindo a conotação negativa da bruxa.
Salomé (Lua Michel, filha da diretora) é uma menina de 9 anos que passa as férias de verão na casa da avó (Ester Catalão) num vilarejo montanhoso na região de Tras-Os-Montes, em Portugal. É confrontada com a morte inesperada da matriarca, e se vê obrigada a enfrentar o sentimento de culpa e injustiça que permeia a tragédia, ao mesmo tempo em que observa os adultos à sua volta disputarem entre si a herança e as despesas do funeral sem que sequer sua avó tenha sido enterrada.
A construção da belíssima conexão entre neta e avó no primeiro ato do filme dita o tom de toda a obra (que lembra Bacurau em alguns aspectos): místico, ritualístico, devocional, espiritual, obscuro, enigmático. A morte é constantemente confrontada pelos personagens, e principalmente, por Salomé. Já em seus dois primeiros minutos, vemos as duas personagens defronte um altar, sob a escuridão evitada apenas pela chama de uma vela, entoando rezas e cânticos à São Jorge em prol da salvação da alma de um falecido familiar. A menina assiste e imita a avó com devoção, e quando a chama da vela se apaga, numa indicação de presença espiritual, a anciã alerta a neta sobre os perigos de se possuir o espírito aberto, tal como o de Salomé, que podem facilmente ser penetrados por outros espíritos.
A relação entre as personagens é uma mútua transmissão de saberes. Enquanto a menina, numa cena muito doce e divertida, chama a avó para dançar e imitar os passos de requebrado mostrados na TV, a progenitora ensina os passos espirituais à menina, que parece herdar os dons místicos da avó. Com a morte da avó, logo a criança se vê absolutamente sozinha, ainda que em meio a uma família numerosa (e composta, majoritariamente, por mulheres), e em uma vizinhança em que todos se conhecem. É curioso como nos parece que os únicos personagens verdadeiramente devotos à matriarca são Salomé e o cachorro de estimação da casa.
As circunstâncias da morte da avó fazem com que Salomé sinta seu luto na forma de inconformismo. E enquanto os adultos amarguram suas dores em discussões entre si e cegueira com relação à dor da menina, seu espírito aberto permite que a alma inquieta da avó busque justiça através da criança. Assim como a avó, Salomé também passa a ser rotulada de bruxa.
Alma Viva é inspirado na vida da própria diretora, que viveu um dilema familiar muito semelhante diante da morte de uma avó que lhe era muito próxima, e do cruel choque sentido ao se deparar com tios e tias em conflito por dinheiro. Foi, inclusive, rodado no vilarejo em que a diretora passou sua infância, e os atores, em sua maioria não profissionais, são pessoas residentes ali mesmo, naquele local de tradições culturais tão fortes.
A diretora, tal como Salomé, aprendeu com sua avó a prática de rituais místicos de bruxaria, como o amplo conhecimento de ervas medicinais, a religiosidade, a importância dos elementos naturais, e busca, através do filme, mostrar esses rituais sem tabus, mas sim, como símbolo de resistência e emancipação feminina. Salomé, carregando o conhecimento da avó e conhecedora de sua ancestral, é o ponto de união e redenção familiar. E é agridoce a inesperada chuva que encerra o longa em um claro sinal de purificação e finalmente, descanso para a alma da avó.
Para ver toda a nossa cobertura da 46ª Mostra SP, clique aqui