Sonne | 2022 | 46ª Mostra de São Paulo

Sonne | 2022 | 46ª Mostra de São Paulo

Descobertas da juventude em um coming of age cheio de contexto político e religioso

Pense em três amigas adolescentes brincando de fazer sua própria versão de um videoclipe famoso em casa, se divertindo despretensiosamente e esse vídeo acaba viralizando. Nada incomum nos dias de hoje, não é mesmo? Mas agora pense em duas jovens austríacas (Bella e Natalie) e nossa protagonista (Yesmin), muçulmana de origem curda, todas trajando hijab (traje islâmico que presa por preservar a modéstia e a moral), com seus véus e lenços, rebolando e dublando a música Losing My Religion da banda R.E.M na Alemanha! É nesse clima que começa Sonne, o longa da jovem diretora de origem iraniana,  Kurdwin Ayub, que vive e trabalha na Áustria e que ganhou prêmio de melhor longa-metragem ficcional no Festival de Berlim.

Após o sucesso do vídeo feito pelas meninas, percebemos reações em  diferentes perspectivas. Yesmin é a única das três que tem origem curda e criação religiosa, enquanto sua mãe reprova seu comportamento e o de suas amigas, achando desrespeitosa toda a encenação, seu pai é um homem descontraído que sente orgulho e incentiva a filha a continuar por esse caminho, sai com as jovens para dançar e as leva em festas. A família tradicional de Yesmin ainda conta com um filho mais novo que tem dificuldades para se encaixar e que acaba andando com jovens de uma gangue local, tentando viralizar na internet e chamar atenção de um jeito torto, filmando a morte de um animal e colocando online, criando confusões com a polícia.

A postura dos pais continua em dicotomia, enquanto a mãe entra em desespero achando que seu filho está perdido e corre risco de vida, o pai faz pouco e acha tudo normal sem alarmismos. Acabam se tornando uma dupla engraçada que arranca risadas do público durante a exibição. Yesmin fica como figura da irmã mais velha que precisa fazer o papel difícil de ir atrás do irmão, com o qual convive em brigas e constantes implicâncias.

O sucesso do vídeo faz  com que as meninas acabem sendo chamadas para participar de programas de tv e para cantar em festas dentro da comunidade muçulmana, casamentos, entre outros eventos sociais. Bella e Nati começam a curtir a fama repentina e também o fato de estarem mergulhadas em uma cultura diferente e vestidas em trajes que não são delas, estar inseridas em uma nova realidade as excita e as aproxima; já Yesmin passa a desanimar e cansar da situação de personagem dentro da própria comunidade. Uma persona online foi criada e socialmente há uma pressão para que ela seja sustentada, mas logo o trio de meninas sorridentes cantando pra se divertir vai se dissolvendo e se desgastando. Isso acaba criando atrito entre Bella e Nati em relação a Yesmin, que passa a se dedicar menos, ao passo que as outras duas já se acham com algum talento real, em uma clara ilusão de “artista instantâneo” que o repentino estouro na internet acaba criando.

Nossa relação com o mundo digital nunca foi tão próxima e tóxica e a cada dia somos mais inseparáveis de nossos aparelhos, todos querem virar produtores de conteúdo até em momentos de lazer. O longa transmite o clima frenético do uso do universo online mostrando repetidas vezes os trechos da apresentação, os compartilhamentos em loop, mas sempre com um tom leve e descontraído. O vídeo em questão engrandece a personagem, mas também a torna  escrava da própria imagem, a fazendo cair em uma rotina que não faz muito sentido pra ela,  e da qual não consegue se desvencilhar facilmente.

Bella, Nat e Yesmin gravando vídeo trajadas de hijab

Yesmin é uma jovem que busca a si mesma em uma descoberta de identidade ainda confusa unida à rebeldia. Usar o hijab para cantar e dançar, usar maquiagem, foram atos de coragem que a expuseram ao amor e ao ódio dentro da comunidade religiosa mais fechada e também aos olhares da juventude alemã secular, colegas de escola e sua família. A diretora parece conhecer muito bem desse universo, mostrando um recorte empático com todo o processo de autoconhecimento da juventude. Na maior parte do filme o espectador se diverte com experiências de baladas, vômitos, bebedeiras, muitas gírias, risadas e dramas que fazem parte da criação da persona de cada um. 

Ayub faz muito bem o contraponto entre a parte conservadora/religiosa e a presença da tradição nos dias atuais com o modo como a fluorescência adolescente e sua rebeldia lidam com isso. A produção é assinada pelo também diretor austríaco Ulrich Seidl, que já ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Veneza e é conhecido por fazer filmes ousados e autorais, como a trilogia Paraíso: Amor; Fé; EsperançaSonne é um filme extremamente contemporâneo e faz muito bem o uso da linguagem dentro do contexto usando certas vezes cenas de captura de telas de celular, imagens de redes sociais e de câmeras de selfie. É um filme de empoderamento da juventude, não só das três amigas, mas de todos os outros jovens que estão ali representados na trama. Não à toa conquistou o merecido prêmio no Festival de Berlim, tem tudo para conquistar os espectadores brasileiros.

Filme assistido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022 | estará disponível gratuitamente na Mostra através das plataformas online este ano.

Nota

Para ver toda a nossa cobertura da 46ª Mostra SP, clique aqui

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  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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