Domingo e a Neblina | 2022

Domingo e a Neblina | 2022

Em tempos em que se faz necessário lutar com tanto afinco contra a opressão, a arte que nos recorda que há opressores que parecem impossíveis de serem derrotados é dolorosa. Em um combate entre a preservação das origens e o meio ambiente contra o capitalismo, já conhecemos o lado vencedor. Domingo e a Neblina é um filme que, na medida que vai acontecendo, já nos permite a previsão de seu final. Mas isso não lhe retira, de forma alguma, qualquer mérito. O efeito é justamente o contrário.

Exibido na seção “Um certo Olhar” do Festival de Cannes e no Festival de Toronto, sendo ainda o representante da Costa Rica na pré-seleção do Oscar 2023, o filme de Ariel Escalante Meza nos apresenta Domingo (Carlos Ureña), um viúvo que vê sua propriedade e residência sendo requisitada por empreiteiros para a construção de uma estrada em meio à floresta tropical. Em uma comunidade que, aos poucos, vai abandonando o vilarejo, Domingo e dois amigos resistem, e por isso, passam a ser ameaçados e perseguidos.

A resistência de Domingo, entretanto, não é motivada somente pela defesa da propriedade. Suas raízes, seu sustento e a dor do enfrentamento do luto pela perda de sua esposa residem naquele local. Notadamente amoroso no cuidado com tudo que envolve a casa, desde o carinho dedicado às poucas vacas que lhe restaram aos detalhes de arrumação, o personagem atribui ao lugar a memória de sua esposa. A narrativa toma um curso místico que muito a enriquece à medida que transforma a dor da viuvez em uma neblina que adentra a casa, como se fosse a própria falecida, sendo recebida por Domingo e com ele dialogando.

O personagem-título é composto com bastante complexidade. Um idoso quase que constantemente embriagado, mas sem que isso lhe tire a lucidez da situação em que se encontra e que se recusa a receber os cuidados da filha, Domingo convive com um remorso que excede sua luta. Não sendo vítima de sua própria condição pessoal, mas sim do sistema no macro, não é difícil criar empatia por sua causa.

A presença constante da neblina e da umidade inerente à floresta tropical torna possível rememorar que a luta contra a construção também é da natureza que se vê ameaçada. O diretor é muito competente e conduz de forma muito poética o misticismo do longa. Nesse ponto, no fio condutor entre o misticismo e a luta contra a opressão, Domingo e a Neblina em muitos momentos faz recordar Bacurau, na medida em que ambos brincam com a realidade cada qual à sua maneira, e porque a ameaça vem na forma de motoqueiros de capacete, em uma menção quase que literal ao espetacular longa brasileiro de Kleber Mendonça Filho.

A obra muito fez lembrar, ainda, Isso não é um enterro, é uma ressurreição, longa do Lesoto que esteve, inclusive, no circuito da 44ª Mostra, que traz o misticismo de forma ainda mais presente, e cuja temática é, justamente, a luta pela preservação das origens e da memória.

O uso da neblina em meio à floresta úmida rende cenas belíssimas ao longa, que peca em certos momentos por exceder e forçar, através de uma narração em off um pouco deslocada, a poesia já presente no longa por sua própria condução. Sua profundidade, entretanto, e sua mensagem desesperançosa trará, no mínimo, reflexões intensas ao espectador.

Filme assistido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022

Nota:

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