Febre do Mediterrâneo | 2022

Febre do Mediterrâneo | 2022

Que lindo dia!

Não sei se tomo um chá, ou se me enforco.

Em uma sala escura de um apartamento, há um corpo feminino no chão. Paramédicos fazem aferições e tentativas de reanimação. Há dois homens ao fundo, sentados num sofá, observando a cena, que é silenciosa e lenta, e vai aos poucos se aproximando dos observadores masculinos. Quando a morte da mulher é constatada e o corpo é levado, os homens permanecem no sofá e iniciam um diálogo bastante curioso. Um deles, impassível, afirma que a matou. O outro, mais jovem, e que descobrimos ser filho da falecida, nega. “Mas eu empurrei uma senhora de 70 anos”, retruca o suposto culpado. E então, o argumento do recém órfão: você pode empurrar uma pessoa, ou não. Se você empurra, essa pessoa pode cair ou não. Se ela cai, ela pode morrer ou não. Logo, a culpa não pode ser de quem empurrou, porque não se sabe o que podia acontecer. A culpa é da pessoa que caiu e assim, morreu. Essa a breve introdução de Febre do Mediterrâneo, coprodução da Palestina (aqui colocada com status de país), Alemanha, França, Chipre e Catar, dirigido pela diretora Maha Haj, e vencedor do Prêmio de Melhor Roteiro na seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2022.

Ela abre espaço para que conheçamos, em retrospectiva, a rotina de Waleed (Amer Hlehel), um dono de casa que mora num apartamento em Haifa, Israel, defronte o mar Mediterrâneo. Ele é acordado pelo filho já vestido, alimenta as crianças, leva-as para a escola, volta para casa, passa pano no chão, lava a louça, toma um banho, senta no sofá e se entrega à televisão. Quando a esposa liga, ele afirma estar trabalhando. Waleed  é um escritor, que se encontra incapacitado de escrever em razão de um quadro de depressão crônica.

A “tranquilidade” de sua rotina, ou ao menos, o silêncio da vizinhança marítima, é perturbado com a chegada de um vizinho barulhento e expansivo, Jalal (Ashraf Farah), e que se mostra o oposto de Waleed. Entretanto, de uma relação que nasce de forma bastante conflituosa, Waleed nutre um interesse por Jalal e sua personalidade que os aproxima de forma bastante improvável.

Apesar de deixar algumas pontas narrativas soltas aparentemente por não fazer questão alguma de decifrá-las, o longa premiado em Cannes possui um roteiro complexo, e que saindo pouco do ambiente doméstico consegue atingir muitas camadas de profundidade.

Uma camada bastante significativa, e eis a beleza da direção feminina em um filme sobre homens: a inversão dos papéis habituais atribuídos às mulheres. Tanto Waleed como Jalal são financeiramente sustentados por suas esposas, e passam o dia, basicamente, dentro de casa. Waleed executa todas as tarefas domésticas, prepara a comida, comparece na escola e nas consultas médicas dos filhos. Cabe à esposa ligar para saber se está tudo bem, enquanto trabalha para sustentar a família.

O que conduz as decisões de Waleed, entretanto, é a depressão. Quando ela reina, o personagem abandona o trabalho doméstico. É curioso que o personagem “dono de casa” esteja atrelado ao quadro depressivo. Estudos psicológicos da década de 60 (esmiuçados no livro A Mística Feminina, de Betty Friedan) diretamente relacionaram a dedicação exclusiva da mulher ao lar e aos filhos à depressão e frustrações com a vida cuja natureza as mulheres da época não conseguiam identificar. Ao mesmo tempo em que Waleed encontra-se num apagão criativo, vê-se, muito embora ame seus filhos, desprovido de qualquer vontade e motivação para viver.

Ainda sobre a inversão de papéis, e essa conexão entre o trabalho doméstico e depressão, a diretora faz questão de trazer ao longa uma cena em que a esposa de Waleed menciona que gostaria muito de ter outros filhos. Entretanto, a recusa pronta vem logo de Waleed: “Crianças são um fardo. Eu amo meus filhos, mas é verdade, elas são. Eu estou cansado de carregar quilos de fraldas pela casa.” O esgotamento mental de Waleed é a mesma exaustão carregada por todas as mulheres e mães que se desdobram, diariamente, em jornadas duplas, jornadas não remuneradas, cuidados com a casa e a criação de seus filhos quase de forma exclusiva.

A melhora do quadro depressivo do protagonista vem de seu convívio cada vez mais constante com Jalal. O vizinho, um trambiqueiro envolvido com trabalho sujo e dívidas, à típica imagem do malandro cinematográfico, mostra-se uma pessoa amável e que ajuda gratuitamente as pessoas, outra subversão trazida pela diretora.  Os motivos da aproximação de Waleed e o vizinho vão sendo decifrados aos poucos, e a improvável relação torna-se uma amizade bastante sincera, e principalmente, uma amizade desprovida de julgamentos e moralismos.

A Febre do Mediterrâneo vai muito além da doença física, é principalmente acerca da doença psicológica e política. Certo é que a obra de Maha Haj é necessariamente provocadora, e a introdução de um personagem como Jalal em meio a uma temática tão densa e um protagonista pouco carismático mostra-se um acerto que traz equilíbrio ao filme. A carreira de Maha Haj, seguramente, é algo a se acompanhar.

Filme assistido via cabine de imprensa na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022

Nota:

Para ver toda a nossa cobertura da 46ª Mostra SP, clique aqui

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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