Como está Kátia? | 2022
A fascinação proporcionada pelo cinema encontra muitos lugares, e certamente um deles é possibilitar que acessemos realidades políticas, culturais e sociais distintas das nossas, o que nos enriquece não só como amantes do cinema, mas principalmente, como pessoas. Hoje, em razão do assustador contexto geopolítico da Ucrânia, falar no país automaticamente nos remete à guerra. Entretanto, Como está Kátia?, filme ucraniano da diretora Christina Tynkevych, não tem interesse em nos contar uma história relacionada ao atual conflito, mas sim, nos apresentar o drama e o dilema carregado por uma mulher, Anna (Anastasia Karpenko), uma mãe solo que anseia por uma vida melhor ao lado da filha, Kátia (Kateryna Kozlova), de 12 anos.
A primeira parte do longa, que foi vencedor do Prêmio Especial do Júri e rendeu à Anastasia Karpenko o prêmio de melhor atriz na seção Cineastas do Presente no Festival de Locarno, é dedicada à agitada rotina de Anna e à sua relação com a filha. Anna é paramédica, do que já se depreende que seu trabalho, por si só, demanda um desgaste psicológico que somente o tempo de profissão naturaliza. A primeira demanda do dia, por exemplo, é prestar socorro a uma jovem que acabou de tentar o suicídio. A rotina de Anna consiste em conciliar situações como essas a pausas para o almoço, por exemplo. A necessária frieza de Anna no trabalho é contrastada por sua relação com a filha. Ao lado de Kátia, a paramédica adquire uma leveza, sorri, ouve música “proibida”, dança e se descontraí.
Em um país como o Brasil, é cultural atribuir à figura do médico uma boa condição e estabilidade financeira. Entretanto, a personagem de Anna, embora paramédica, leva uma vida financeira nada confortável. Mora com a mãe e a irmã e divide um quarto com a filha, utiliza transporte público, sendo este seu meio de transporte para ir ao trabalho e levar Kátia na escola. A grande conquista da protagonista é a recente compra de um apartamento que ainda está sendo construído, é bela a cena em que mãe e filha imaginam os cômodos e sua decoração em um ambiente que sequer possui paredes.
Em meio a atribulada rotina de Anna, algo inesperado acontece: ela permite que a filha desça do ônibus sozinha para ir até a escola. Assim que desce do coletivo, a menina é atropelada.
O filme, que já carrega muitos atributos para se tornar excessivamente dramático, permite que a tragédia por si faça suas vezes sem carregá-lo (ele já é inimaginavelmente doloroso). Há, na verdade, um certo sufoco provocado pela ausência de emoções externadas por parte de Anna, que assume de vez sua personalidade fria e calejada para apenas se entregar ao silêncio, à distância e ao trabalho.
Tão doloroso quanto o acontecimento em si, são suas consequências, principalmente causadas pela falta de apoio institucional, pois Anna, que deseja a punição jurídica de quem causou o acidente com sua filha, se vê enfrentando pessoas politicamente poderosas na cidade, e é tratada com desprezo por quem deveria representar a justiça, sendo ainda pressionada por todos os lados a silenciar sua dor mediante indenização.
Além disso, a personagem que antes comemorava com a filha a aquisição de seu apartamento, vê-se atolada em dívidas hospitalares do tratamento da filha (o sistema de saúde ucraniano, do que se depreende do filme, não é público), e impotente por compreender, como médica, que Kátia não recebe os cuidados adequados para sua condição pela falta de recursos do hospital.
Como está Kátia? é um filme denso, doloroso e que provoca no espectador nó na garganta, mas que a competência da diretora e a maestria de Anastasia Karpenko permitem que seja possível realizá-lo sem pesos excessivos. Isso não significa, entretanto, que haja qualquer espécie de alívio ao tema que carrega.
Filme assistido via cabine de imprensa na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022
Para ver toda a nossa cobertura da 46ª Mostra SP, clique aqui