Entrevista com Juan Posada
Diretor de “A Filha do Caos”, exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, conversou com a gente sobre seu filme, seu processo de criação e referências, além de contar de um novo longa que está por vir. Confira:
“Olá Juan, muito obrigada por nos conceder a oportunidade de entrevistá-lo sobre seu novo filme. Eu sou a Mari Dertoni e em nome do Coletivo Crítico lhe envio as perguntas:”
Coletivo: Juan, não se passam muitos minutos até que possamos notar no longa o uso de uma linguagem híbrida e que permeia o cinema e o teatro, inclusive com recorrentes quebras da quarta parede e uma sonoplastia que emula uma plateia. Qual sua relação com esse universo e o que lhe influenciou na escolha dessa abordagem ao unir teatro grego e cinema?
Juan: Eu creio que em todo filme habita um teatro. Quais os teatros possíveis no cinema? Nos dias de hoje certo tipo de teatro realista está dominando o cinema, e me interessa um outro teatro para o cinema, mais ligado às vanguardas, não realista. Então, em A Filha do Caos busco formas teatrais novas, cenas dramáticas diversas, para compor o filme. É importante dizer que o enquadramento, como ato fundante do cinema, libera um espaço de jogo para o teatro contido no filme, neste sentido, não há propriamente teatro, mas sempre cinema em um filme, e então entramos em outra questão: quantos cinemas possíveis são permitidos em um filme?
Coletivo: A fotografia e montagem em A Filha do Caos são bem marcantes e trazem aspectos de um cinema de vanguarda. O uso de muitos close-ups, os cortes precisos para ajudar a expressar o terror e as angústias de Maria lembraram artifícios utilizados no expressionismo alemão, como a criação de uma realidade subjetiva e em filmes de horror como “Repulsa ao Sexo” de Polanski. Fazem sentido tais comparações?
Juan: Tais comparações fazem sentido sim. A Filha do Caos é um filme de Mistério, por ser um filme religioso, que pretende abordar experiências simples e essenciais: o exercício de transcendência em direção ao outro, também em direção ao outro de nós mesmos, do Mistério que nos habita. Então o filme trabalha com revelações, aparições, desvelamentos. Por exemplo, a tragédia de Édipo tem o signo do desvelamento: Édipo que se mostra como um governante clarividente no início da tragédia, aparece ao final cego e exilado. Busquei, então, uma encenação ligada ao expressionismo, na fotografia busquei a abstração cênica, jogo de forças entre linhas, contrastes, volumes, e uma câmera que fosse parte da ação, uma câmera-corpo, num corpo a corpo com a cena dramática. Esse corpo a corpo da câmera visa criar um gestual cênico caótico.
Coletivo: O filme depende bastante da atuação de Bruna Spínola, que inegavelmente incorporou muito bem a persona conflituosa entre Maria e Jocasta. É notável destacar, inclusive, que a atriz também assina o roteiro. Como se deu a aproximação entre vocês e como foi dirigi-la?
Juan: O que pode ser revelado no encontro entre um diretor com a câmera na mão e uma atriz que habita o espaço cênico aberto pelo enquadramento? A resposta a essa questão é parte constituinte do filme. Dirigi-la, em muitos momentos, foi comtemplar com a câmera a Bruna criando em ato. Uma atenção de ambos pelo tempo de criação do outro. Esse exercício de transcendência em direção ao outro, que mencionei na resposta anterior, de escuta atenta ao que se apresenta diante nós, também está presente no filme na relação entre diretor e atriz. Já havia dirigido a Bruna em outros filmes: Let’s Play Jazz de 2014 e em um filme, ainda inédito, em que Bruna contracena com o saudoso cineasta Luiz Rosemberg Filho, filme que se chama “Nietzsche & Frederica”. Então, a Bruna me propôs um filme sobre uma atriz em crise, e situei essa atriz vivendo o Mistério de Maria, que é A Filha do Caos.
Coletivo: Em A filha do Caos parece não haver intenção alguma de “facilitar a vida” do espectador, pelo contrário, há certa “hermeticidade” no uso de simbolismos e signos que não buscam responder, mas intrigar, atiçar o olhar. Houve uma preocupação em relação a recepção do filme quanto a isso? Como você abraçou esse processo mais experimental?
Juan: Sempre existe a preocupação de fazer o melhor filme possível, o mais belo possível, e o desejo de que o filme possa tocar corações e mentes. Penso que essa comunicação pode se dar quando a proposta é coerente, e penso que não se trata de agradar, mas de estabelecer um diálogo com o espectador. De fato, o filme se aproxima de um cinema intelectual, tal como exposto por Eisenstein, mas que não se realiza na montagem, mas já na dramaturgia, onde temos a aproximação de signos e símbolos de mitologias diferentes. Me interessa fazer um cinema não realista, ligado às vanguardas, ligado a uma tradição do cinema brasileiro, do Cinema Novo, do cinema de invenção, desde Limite de Mário Peixoto, fotografado por Edgar Brasil.
Coletivo: Por último, gostaria de saber como foi para você dirigir um filme que expressa uma angústia tão feminina? Como foi seu processo de busca desse olhar para a questão feminina?
Juan: Interessante a questão e difícil. Sou filho. Sou pai. Homem. Amante. Muitas vozes femininas me habitam. O que essas vozes dizem? Penso que de certo modo essas vozes que me habitam ressoam nos poemas e falas que escrevi para o filme. Jocasta não tem voz na tragédia: o que ela teria dito? De outro lado, Maria, mãe de Jesus, a ideia de produzir essa imagem sempre me fascinou: um signo que está presente em todas as mulheres, como flagrar esse aspecto? Acho que no filme tem essa busca.
Confira nosso texto sobre A Filha do Caos, por Eduardo Gouveia, que também colaborou com esta entrevista, aqui.
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JUAN POSADA é um diretor de cinema brasileiro. Vive no Rio de Janeiro, onde também atua como filósofo, professor universitário de filosofia, roteirista e ensaísta. Escreveu, entre outros, o roteiro do longa-metragem Cinema Novo (2016 -de Eryk Rocha). Dirigiu os longas metragens Estado
de Exceção (2012), um drama policial noir, e Let’s Play Jazz (2014), um filme documentário/ficção sobre música e filosofia. No teatro, montou as peças “Pour en finir avec le judgement de dieu” e “A Exceção e a Regra”. Criou e organizou, com Paula Gaitan e Eryk Rocha, o evento “Cinema que Pensa – Encontros de Filosofia e Cinema”, de 2004 a 2010, no Rio de Janeiro. Autor do livro “Cinema sem Imagem – Ensaio de filosofia” (2022).
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