Carvão | 2022 | 46ª Mostra de São Paulo

Carvão | 2022 | 46ª Mostra de São Paulo

A normalização do absurdo em um mergulho no interior do Brasil

“a gente aprende a sofrer pra dentro, né?”

Um intruso em nossas casas pode causar muitos danos, e é assim que César Bordón (Relatos Selvagens, Colonia) entra em cena, interpretando um traficante argentino fugitivo chamado Miguel, que precisa se esconder por algum tempo no lugar mais improvável de ser encontrado: a casa da família de Irene, –  interpretada por Maeve Jinkings de Falsa Loura, Aquárius, O som ao Redor –, que mora no interior do Brasil com seu marido, filho pequeno e pai idoso e enfermo. A família vive em situação precária, sobrevive com o mínimo e depende financeiramente da carvoaria construída em seu terreno e de algumas encomendas de comida que Irene faz.

Carolina Markowicz é uma diretora e roteirista que já lançou seis curta-metragens exibidos em diversos festivais de cinema pelo mundo, dentre eles Cannes, Locarno e Toronto, ganhando alguns prêmios. Seu curta mais conhecido é “O Órfão (2018)” (que pode ser assistido aqui), filme que destaca a difícil vida de crianças postas para adoção no Brasil, como o sistema pode prejudicá-las ao invés de ajudá-las, tendo como viés principal a crítica ao preconceito sofrido por uma criança gay, que quando se revela aos novos pais, é constantemente devolvida ao orfanato.

O cinema como forma de denúncia e o que preza por expor o lado mais cru e marginal com recortes precisos de um Brasil menos mostrado em tela grande, parece interessar muito a diretora, pois assim também ela ganha visibilidade em seu primeiro longa metragem. Carvão, por trás das camadas do suspense e melodrama familiar, se desmembra em situações inusitadas vindas de justificativas completamente humanas e mais uma vez reforça o seu cuidado sutil com o cinema queer.

Depois que a enfermeira Juracy (Aline Marta Maia), que cuida do pai de Irene, sugere que ele não tem muitas chances de sobreviver sem o respirador e o tubo de oxigênio que utiliza, faz a proposta para a família abrigar o fugitivo em troca de uma boa quantia de dinheiro. Com isso, um lugar na pequena e humilde casa precisa ser desocupado para o novo hóspede. Irene não pensa demais, mas vai à igreja, faz questionamentos ao padre sobre quanto sofrimento um homem deve aguentar em vida, se é a vontade de Deus destinos tão cruéis, tentando achar conforto no ato desumano que está prestes a cometer: matar seu próprio pai. O idoso que dividia o pequeno quarto com seu neto Jean, logo não está mais lá, virou carvão. 

Miguel uma vez instalado, ocupando a velha cama do avô de Jean, é forçado a conviver com o menino de cerca de 10 anos e a conhecê-lo melhor. Cria-se uma estranha cumplicidade entre os dois, Jean é atento a tudo, ao flerte e insinuações de sua mãe com Miguel, aos constantes usos de drogas em seu quarto, a morte de seu avô. Ele presencia tudo, absorve tudo e parece ter ambições de sair dessa vida um dia. Jean diz a Miguel: “eu posso ser seu ajudante, eu não tenho medo de nada”; e Miguel, mesmo sem saber de seu futuro, promete: “um dia eu venho te buscar”. Se há algo em comum entre os personagens em Carvão certamente é o fato de que todos escondem a verdade e se mascaram diante dos demais, ninguém mostra genuinamente quem é e sutilmente vamos descobrindo a farsa de cada um. 

Ator mirim Jean Costa, que interpreta o filho de Irene e Jairo no longa.

Muito do longa se passa dentro de casa, o clima é escuro, janelas e portas sempre fechadas e todo cuidado para que ninguém saiba da existência de Miguel sugerem um clima de suspense. A vizinha Luciana (Camila Márdila), faz uma visita a Irene, se demorando e sugerindo insistentemente querer ver seu pai doente no quarto, quarto que já se tornara esconderijo de Miguel. Entre conversas nervosas um clima de medo vai se formando naturalmente, muito pautado nas excelentes atuações, no trabalho de direção de atores, na força do corpo de cada personagem.  

A tensão de estar abrigando um criminoso é reduzida quando comparada com outros tipos de tensões presentes na trama. Irene e seu marido Jairo (Rômulo Braga) passam por maus momentos no casamento, não há mais desejo entre eles, parece uma união cunhada na própria sobrevivência e em algum sentido de convivência em comunidade. Mesmo sem gestos ou demonstrações de afeto, eles se ajudam. Enquanto Jairo deseja outra pessoa, Irene nutre um interesse sexual súbito pela nova presença masculina em casa. Não pesam julgamentos de caráter ou moral pelos atos cometidos por cada personagem, pesam os extremos que levaram cada um a agir como precisaram. Irene, Jairo, Juan e Miguel, todos acham suas saídas para sobreviver.

Markowicz se mostra uma diretora potente, seus curtas já prenunciavam que algo de muito bom surgiria em longo formato. Carvão, que levou três prêmios no Festival do Rio (Melhor Roteiro, Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Direção de Arte) e passou no circuito da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, retrata a típica vida brasileira em um interior por muitos esquecido, pouco visto e muito menos lembrado. Há fluidez no desenvolvimento dos personagens em decorrência das boas escolhas de elenco, sem que seja preciso apontar um vilão. Irene é uma mulher forte, endurecida pela vida, enquanto as figuras masculinas são mais frágeis em tela. Miguel é um homem acuado, Juan passivo e Irene é a voz que direciona os atos. Talvez os grandes vilões aqui sejam a fome, a miséria e o descaso. O filme estreia dia 03 de outubro nos cinemas brasileiros.

 Filme assistido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022

Nota

Para ver toda a nossa cobertura da 46ª Mostra SP, clique aqui

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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