Blanquita | 2022
Blanquita não é um filme de fácil digestão. Escrever sobre ele, tampouco é uma tarefa simples. A impunidade e a proteção institucional de homens brancos, ricos e poderosos ocorre Brasil afora, por mais assustadora e criminosa que sejam suas práticas. Atualmente, vimos o herdeiro das Casas Bahia, Saul Klein, ser investigado por crimes sexuais horrendos praticados contra mais de 30 mulheres, as quais mantinha como escravas sexuais em uma espécie de “harém” criminoso (detalhes da investigação podem ser conferidos aqui.
O longa Blanquita, dirigido por Fernando Guzzoni, vencedor do prêmio de melhor roteiro na seção Horizontes do Festival de Veneza, e indicado pelo Chile como representante para vaga no Oscar 2023, tem a complicada missão de trazer às telas um caso semelhante. Baseado em um escândalo de prostituição infantil e rede de pedofilia que ocorreu no Chile no início dos anos 2000 (conhecido como Caso Spiniak), o projeto conta a história de Blanca (Laura Lopez Campbell), jovem de 18 anos e mãe de um bebê, que mora e trabalha em um abrigo para meninos e adolescentes órfãos e abandonados mantido pelo padre Manuel (Alejandro Goic), que resolve denunciar a ocorrência de festas sexuais, organizadas por políticos e homens influentes, com exploração e abuso de menores, em que Blanca (ou Blanquita, como carinhosamente é conhecida) é a principal vítima e testemunha. Entretanto, não só a negação da denúncia, como a credibilidade da jovem e a veracidade de seu testemunho começam a ser questionadas. Mexer neste vespeiro dá início a uma série de perseguições e ameaças visando o silenciamento da personagem.
O diretor Fernando Guzzoni imprime um olhar muito cuidadoso sobre o tema. Todos os relatos de horror e violência sexual que envolvem, inclusive, o assassinato de uma criança, nos são apresentados através do testemunho de Blanquita, nunca através de imagens. Escolhe-se explorar a personalidade da personagem-título, as evidências de sua infância roubada, o amadurecimento forçoso que o sofrimento lhe impôs, ao mesmo tempo em que exibe a inocência e a infantilidade daquela mãe.
A interpretação forte de Laura Lopez Campbell, que carrega o peso narrativo de Blanquita com muita naturalidade, muito bem pondera as nuances da personagem que é mãe, mulher, criança, adolescente, vítima, amiga, confrontadora, endurecida pela dor sem deixar de aproveitar algumas alegrias da vida, tudo em uma só pessoa. Muito embora sua denúncia necessite do endosso de outras pessoas para que seja ouvida e levada adiante (o padre, uma promotora de justiça e uma deputada), Blanca sempre faz suas próprias escolhas e não toma decisões que não sejam suas.
Tão perturbador quanto sua própria temática, é o dilema moral e social que o diretor expõe ao julgamento do espectador: que sociedade é essa em que não se pode mentir, mas se pode estuprar menores com impunidade? A mentira, ou o deslocamento de vozes denunciantes que se dá no filme, é mais grave do que a própria exploração sexual e o assassinato de crianças?
A resposta vem da forma mais incrédula e realista. A denúncia se torna um jogo de poderes em que Blanquita jamais sairá vencedora. Blanquita é o tipo de filme que se encerra sem nenhum conforto para o espectador, sem necessitar trazer à tela uma cena sequer de violência explícita. O cinema chileno se mostra forte e confrontador, tal como a arte-denúncia deve ser.
Filme assistido via cabine na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022
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