Aftersun | 2022

Aftersun | 2022

Memorabilia: conjunto de objetos e coisas guardadas ou colecionadas por estarem relacionados com pessoas, acontecimentos ou épocas importantes. Essa palavra transmite muito do que é a experiência de assistir Aftersun, que como um álbum de memórias de infância, um abraço nostálgico de uma relação entre pai e filha cheio de camadas traiçoeiras, oscila sentimentos de descoberta, amor e desconforto. Lembrar de momentos passados nos traz imediatas emoções, a fotografia tem um poder incrível de nos fazer voltar no tempo, mas imagens em vídeo se tornam ainda mais poderosas nesse sentido. Sophie (Celia Rowilson-Hall), através de registros encontrados em uma antiga filmadora Mini DV, relembra momentos de uma viagem feita com seu pai Calum (Paul Mescal), há 20 anos.

A passagem do tempo pode nos causar estranhamento ao dar novos sentidos a momentos vividos e nos revelar outro entendimento sobre eles. Coisas que acontecem em decorrência do amadurecimento e que a pequena Sophie de 11 anos (Frankie Corio) não seria capaz. Ela não tinha, à época, meios de notar que a viagem com seu pai, recém divorciado de sua mãe, seria uma espécie de fuga, um refúgio da dor e da solidão que sentia. Em terras extremamente solares e paradisíacas da Turquia, a dupla passeou por resorts, praias incríveis, visitas guiadas, fez novas amizades e descobertas. Mas são nos pequenos detalhes, escondidos em momentos de solitude retratados de forma distinta para pai e filha, que a diretora consegue evidenciar as rachaduras existentes em cada um, como o grande vazio em Calum e  uma inquietação de carências egocêntricas na jovem Sophie. 

O filme se divide quando os dois personagens também o fazem. Na grande maioria do tempo, pai e filha estão juntos, mas quando se separam, vivem seus universos particulares, independentes e passam por conflitos internos totalmente sozinhos. Sophie descobre coisas novas, em uma noite quando escapa do quarto e dos olhos já meio desatentos de seu pai, vaga por horas sozinha pelo resort, se diverte com pessoas desconhecidas mais velhas do que ela e dá seu primeiro beijo à beira da piscina com um menino que conheceu mais cedo, jogando videogame

Há certa desconexão entre Sophie e Calum, uma desconexão dolorosa que permeia a dupla, mesmo quando unida. Enquanto Sophie, ao não encontrar seu pai, resolve explorar a noite e sua repentina independência, Calum se embebeda no quarto e adormece sozinho na praia, sem notícias de Sophie. Enxergar seu pai como uma pessoa pode levar tempo e vice-versa. Quando nesta relação pai e filha, a responsabilidade de um para com o outro é a de criar, sustentar, vigiar, enxergamos muito mais pela ótica de um universo convencional, do que uma relação entre dois seres humanos complexos, que sofrem e que nem sempre se entendem.

Frankie Corio e Paul Mescal como filha e pai em Aftersun

O longa da diretora escocesa estreante, Charlotte Wells, expõe com extrema sensibilidade as memórias de uma filha sobre seu pai, ressignifica momentos, preenche algumas lacunas e abre outras. Confunde memórias com uma realidade imaginária e desconexa que não busca explicar demais, mas sim transmitir sensações através de imagens. Preso na linguagem fragmentada das memórias, o filme nos faz refletir sobre o peso das emoções que nem sempre demonstramos ou controlamos, com Calum, um ótimo pai, que faz de tudo para que sua filha tenha a melhor experiência possível na viagem de férias, vive um turbilhão de medos, ansiedade, depressão, inseguranças e desesperanças, nesse processo. Paul Mescal entrega uma atuação sensível que faz jus ao comprometimento genuinamente amoroso de Calum.

Com uma decupagem extremamente competente, preocupada com o sensorial, mas também com o que é palpável, como num fluxo constante de sentimentos e de absorção de novas experiências a cada segundo, Aftersun flui como as águas claras que pai e filha submergem, como o vento soprando nas árvores, o sol queimando a pele. Algumas cenas são recontextualizadas, pois rebobinar uma fita é possível, ao contrário da vida que passa, passa rápido e caminha em uma linha do tempo que segue apenas para a frente.

 Sophie cresce e muda, notamos em cenas lindamente embaladas pelo som de “Under Pressure” da banda Queen, a escuridão piscante e turva das incertezas da memória, do peso da existência, com uma dança que liberta e extravasa. Não sabemos muito mais dela ou de seu pai, não precisamos saber exatamente como eles se relacionam “no futuro”, a preocupação de Wells parece ser em nos fazer sentir, com uma obra extremamente sentimental.

Aftersun estreia dia 1° de dezembro nos cinemas brasileiros. Um lançamento MUBI e AO2 Filmes.

Nota:

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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