Até os Ossos | 2022

Até os Ossos | 2022

“Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo.”

trechos da letra de “Comida” – Titãs

Romance canibal de Luca Guadagnino, mescla road movie, coming of age e terror.

Você tem fome de quê? Os dois jovens que protagonizam Até os Ossos, novo filme do diretor italiano Luca GuadagninoMe Chame Pelo Seu Nome (2017), Suspiria (2018) –, têm muita fome, uma fome incomum e como todo ser humano faminto, vive em busca de saciedade. Quando saciar esta fome se torna um vício, um problema social é estabelecido. Assim como os viciados precisam viver à margem da sociedade para sustentar seu vício, os personagens de Guadagnino, para sobreviver, também são marginalizados. 

O diretor que ousou com o remake de um dos maiores clássicos do Giallo (leia nosso texto sobre Suspiria aqui) e com um filme de temática LGBTQIA+ super elogiado na bagagem, não tem medo de abordar dessa vez o canibalismo, outro assunto delicado e que pode incomodar muita gente.

Com clima de um coming of age, começamos acompanhando um dia na vida da jovem Maren Yearly (Taylor Russell), jovem que vive com seu pai em uma casa humilde e isolada. Maren mostra ter lembranças turvas de sua infância e uma clara lacuna em sua criação. Pai e filha parecem estar sozinhos há bastante tempo, instalados de forma precária e desajustada, como se estivessem em constante mudança, e de fato estão. Maren recebe o convite para ir à casa de uma colega de classe à noite, foge pela janela de seu quarto sem que seu pai possa vê-la sair e corre de encontro às meninas. Em meio a risadas, unhas pintadas de esmalte colorido e brincadeiras com maquilagem, Maren está deitada no chão ao lado de uma amiga e subitamente coloca o dedo dela em sua boca com um gesto quase erótico, mas que termina com uma feroz e afiada mordida. Maren parece inebriada por sentir a carne, o sangue e o pedaço do dedo em sua boca, consequência de sua ação incontrolável.

Após o incidente, sabendo que teriam que se mudar novamente às pressas, o pai de Maren a abandona, deixando-a apenas um envelope com algum dinheiro e uma fita cassete com uma história  narrada, a história de um passado nebuloso que ela decide tentar reescrever ao resolver sair em busca de sua mãe que saiu de casa quando Maren era pequena. Desse ponto em diante seguimos uma espécie de road movie adolescente por estradas americanas nos anos 80, em uma América hostil no governo de Reagan, onde Maren tem apenas um nome na certidão de nascimento e uma cidade como norte.

Em uma noite na estrada, Maren cruza com Sully, um excêntrico e assustador senhor, interpretado por Mark Rylance, que a encontra e a atrai para uma casa nos arredores, dizendo sentir seu cheiro e se familiarizar com ela. Nesse encontro vemos Maren se permitir deleitar uma refeição junto a ele, devorando visceralmente a antiga moradora da casa. O road movie então, ganha ares de horror movie com fotografias sangrentas, com seus rostos e roupas ensopadas de sangue, satisfação e alívio. Embora Sully a quisesse por perto, Maren não se sente segura e decide ir embora. 

Seguindo viagem, ela encontra Lee (Timothée Chalamet), um menino marginal e rebelde, com aproximadamente a mesma idade que a sua, em um mercadinho de beira de estrada. Ele defende uma mulher de uma situação no mercado e chama atenção de Maren por isso e também por seus cabelos pintados de magenta e suas roupas um tanto femininas, compondo um visual atípico e intrigante. Lee é um jovem que vagava sozinho com uma caminhonete, que também revela um passado conturbado e problemas na família. Os dois se conectam de imediato, parecem também se reconhecer da mesma maneira, com a mesma fome. 

Timothée Chalamet e Taylor Russell em Bones and All

Os jovens que andavam sozinhos até então, passam a formar uma dupla quase inseparável e que se une cada vez mais, fazendo o longa transitar do horror movie para o romance em instantes. Guadagnino consegue criar uma atmosfera sensual a partir da interpretação de  Timothée Chalamet, que protagoniza desde cenas de masturbação e beijo gay a cenas de amor. A carga dramática depende mais da excelente atuação de Taylor Russell, que entrega ainda mais do que o colega mais experiente em Até os Ossos

Guadagnino diversifica e é interessante acompanhar as transições do filme, observar as faces obscuras das vias secundárias das Américas. A sociedade canibal marginal passa fome e também se regozija com uma satisfação por vezes alucinante quando se alimenta, o cidadão americano em miséria certamente não faz diferente. Dentre os passeios narrativos do longa, pesa mais o romance e por vezes enfadonha a linearidade narrativa, mas também não traz uma trama de romance canibal banal. “A gente não quer só comida”. Até os Ossos fala de rejeição em dois níveis: a rejeição pela sociedade (abandono e alienação social) e a rejeição de si mesmo (aprender a lidar com a condição canibal); do desejo de se encontrar e da busca por pertencimento. 

Nota

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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