Cría Cuervos | 1976

Cría Cuervos | 1976

Existem certos problemas que permanecem indissolúveis à razão humana. Mesmo que dotados de inteligência, sucumbimos diversas vezes em nossos pensamentos e sentimentos. Desde os dilemas mais íntimos até as mais complexas organizações sociais e de poder, nossa psique é carregada com um peso que muito nos parece insuportável. A Filosofia e a Psicanálise nos deram algumas chaves interpretativas para lidarmos com essa relação do Eu-Outro. Descobrimos o inconsciente e racionalizamos nossas dores e traumas. Mesmo assim, não existem manuais que nos ensinem a lidar com a morte e com a espiritualidade, com as expectativas e as frustrações. São os paradoxos que a própria vida nos coloca, que nos marcam e nos fazem ser quem somos; são fundamentais e inerentes ao indivíduo inquieto. Talvez seja necessária uma vida toda para (quem sabe?) no último suspiro entendê-la (ao menos um pouco). E essas respostas, para onde irão depois do fim?

Carlos Saura, diretor e roteirista de Cría Cuervos, é uma dessas almas inquietas e pensantes. Se observarmos sua filmografia, veremos questões de interesse político, psicanalítico, estudos sobre o amor, a traição, o ódio, a vingança, a morte. Também encontraremos as diversas fases de sua obra: uma mais militante, outra romântica, sempre saudosista, mas também rebelde, até mesmo uma busca identitária da cultura hispânica e latina. Em Cría Cuervos, seu filme de 1976, temos o exemplar mais complexo de seu trabalho, pois nos revela muitas dessas camadas. É aqui que podemos vislumbrar a profundidade dos tais paradoxos essenciais da existência humana, através da reminiscência à uma infância fragmentada, dita pela personagem como o período mais triste da vida. A própria constituição do Eu é uma fragmentação inconstante, ora quebrada por dentro, ora estilhaçada pelo que vem de fora. É assim que conhecemos Ana (Geraldine Chaplin), que só existe quando retoma seus cacos de uma inocência partida por uma guerra, preenchida de inúmeras questões e de poucas respostas.

A infância de Ana é vivida no contexto da Espanha sob a ditadura do general Francisco Franco, o que nos remete à biografia do próprio diretor. Saura nasceu em 1932, ou seja, presenciou os momentos mais conturbados de seu país. A Guerra Civil Espanhola evidenciou um golpe antidemocrático que negou as eleições que escolheram um governo de esquerda, para inserir um longo regime ditatorial financiado pelos movimentos nacionalistas alemão, italiano e português, que teria seu fim apenas com a morte de Franco, em 1975. Toda a formação de Saura como fotógrafo e depois como cineasta foi sob o jugo franquista. Portanto, seus filmes das décadas de 60 e 70 trazem consigo esse teor político que, assim como para Luis Buñuel e Salvador Dalí, precisou caminhar por vias surrealistas para ludibriar a censura e tecer sua crítica. É ainda mais interessante levarmos em consideração que Cría Cuervos foi lançado no ano em que a Espanha começava seu processo de redemocratização. O diretor traz à tona uma memória que precisa ser revisitada para que o povo espanhol siga em frente, apesar de suas chagas.

Ana, então, regressa até sua lembrança mais obscura. Aos oitos anos de idade (agora interpretada por Ana Torrent), ela é órfã. Primeiro sua mãe (também interpretada por Geraldine Chaplin) agoniza e acaba falecendo; depois seu pai (Héctor Alterio), militar franquista, tem um ataque cardíaco e também morre. A pequena Ana precisa lidar com o mistério da morte enquanto convive com suas irmãs, agora criadas por uma tia (Mónica Randall). Não há mais a presença afetuosa da mãe, assim como a opressora do pai (pelo menos não mais na realidade). Entretanto, os traumas permanecem. O autoritarismo representado pelo pai é incompatível com a doçura da mãe, algo ainda incompreensível para a criança. O que se sabe da figura paterna é seu machismo, abuso, traições, desinteresse familiar e seu militarismo. Tudo isso nos é apresentado pelas visões que a menina tem, criando longas conversas com o fantasma da mãe, além de vislumbrar os atos desprezíveis do pai. Ao mesmo tempo em que as visões da mãe funcionam como refúgio para Ana, é também seu martírio, pois ela tem consciência de que no mundo real ela não mais habita.

Por mais traumática que possa ser essa fase, ela também traz o caráter mais lúdico da vida. Quando as irmãs se juntam, temos os momentos mais acalentadores do filme. Talvez a cena que mais marca os espectadores de Cría Cuervos seja a dança ao som de Porque Te Vas?, da cantora Jeanette. É pela via da criatividade e da brincadeira que a força da irmandade consegue escapar do moralismo imposto pela tia e pelos resquícios do pai autoritário. O peso da questão que Ana carrega aparece na letra da canção: todas as promessas de amor, carinho, cuidado, se foram. Mas quando elas se juntam para dançar, enquanto a tia não aparece para repreendê-las, nasce uma força de resistência. O moralismo que permeia os quatro cantos daquela casa vaza pela brecha imaginativa das crianças.

É na ausência da tia que as irmãs resolvem “explorar” os armários dos pais. Pegam algumas roupas e montam um teatrinho representando a mãe, o pai e a empregada. A escolha do elenco cria uma amarração que torna o roteiro ainda mais forte: a pequena Ana interpreta a mãe na encenação, que, se pensarmos na fase adulta, é interpretada por Geraldine Chaplin nos dois papéis (mãe e filha adulta). A proximidade entre as duas tem o peso de um trauma que o espectador adulto e consciente saberá reconhecer muito mais do que as crianças que vivem aquele momento de pura inocência. A cena feita por elas mostra o quanto a opressão do pai sobre a mãe reflete em seus subconscientes. Aliás, ninguém naquela casa parece ter um trato delicado para com as crianças. A empregada Rosa (Florinda Chico) não hesita em narrar para Ana um caso de abuso do pai, levando a mente fértil da menina a imaginar o fato. Novamente: a delicadeza estava na figura da mãe, agora inexistente.

Quando não há mais o ponto de fuga para Ana, o que resta é a cruel realidade. A expressão de Ana Torrent ao longo do filme pouco ou nada muda, são os olhos tristes e o rosto inerte da criança que nos marcam durante toda a projeção. São as cicatrizes de uma maturidade forçada. Em uma das cenas mais angustiantes, Ana, enquanto empurra a cadeira de rodas de sua avó pelo jardim, vê a si mesma no teto da casa. Então, ela pula. Mas a câmera resiste à queda, fica flutuando no ar. Saura ainda acredita na resistência de Ana e intervém em seu delírio de morte. É terrível pensarmos que uma menina de 8 anos deseja a morte, talvez da mesma forma que é inexplicável para Ana a solidão e a morte dos pais.

O processo de superação é sempre doloroso. Nossa narradora, Ana, vê a si mesma aos 8 anos no meio de uma briga entre os pais. Sua mãe em desespero conta que está doente, mas o marido a repreende dizendo que só deseja sua atenção. Em um dia passeando pela casa de campo de um amigo da família, ela presencia a traição do pai com a mulher de seu parceiro militar. Em outro momento, a pequena Ana observa a mãe moribunda na cama, gritando por uma dor insuportável. É como se observássemos um processo psicanalítico em que Ana descobre a si mesma na infância. Quando ela considera e deseja sua própria morte aos 8 anos, são essas imagens que estão consigo, mas em um lugar tão profundo que ainda lhe era inalcançável. Quando grita pela morte da tia não é por realmente lhe desejar o fim, mas por ter em si a dor da mãe que não suportava mais a vida que lhe fora imposta.

Por mais intimista que essa narrativa possa parecer, Carlos Saura não só propõe uma análise de Ana, mas de toda a Espanha. Voltando a contextualização política podemos enriquecer ainda mais a leitura do filme. O povo espanhol é aquele que regressa a uma infância marcada pela ditadura de Franco. Por mais profundas que sejam as feridas, é necessário que se olhe novamente para elas, assim como Ana o faz. Anselmo, o pai, é a representação do militarismo franquista, do falso moralismo típico dos autoritários, é aquilo que corta tudo que há de bom e destrói sua “pátria-mãe”. A pequena Ana e suas irmãs são a “Espanha-infância” rompida. A tia Paulina é a representação de uma burguesia fétida que aceita as condições ditatoriais acreditando ser essa a solução. Há ainda a presença da avó emudecida, como se não houvesse mais forças de resistência, apenas suas memórias pelas fotografias. A complexidade tão grande dos problemas da vida nunca se desvinculará da política e da forma como somos manejados por ela.

Por fim, como todo processo psicanalítico bem sucedido, há esperança porque há tomada de consciência. Toda essa história se passa nas férias escolares das meninas, desde a morte do pai até um domingo no campo. A narradora se recorda de um dia feliz com suas irmãs, na mesma casa em que vira seu pai traindo a mãe. Porém, a lembrança agora é outra. Todas saem para brincar e, como dito, é na irmandade que temos os momentos mais acalentadores do filme. Brincando de pique-esconde, Ana encontra os esconderijos das irmãs, fazendo com que estas caiam “mortas” no chão, já que foram encontradas. Ana pede para que “ressuscitem”. Seu rosto, que até então era tão maduro e inexpressivo, ganha a marca da infância, do sorriso. Ainda há um traço da delicadeza da mãe; ainda há uma luz ao povo espanhol que precisará reaprender a viver. No último café da manhã antes do retorno às aulas, Irene (Conchita Pérez), a irmã mais velha, conta para Ana um pesadelo terrível que tivera aquela noite: alguns homens tentavam matá-la, mas quando iam fazê-lo, ela acorda. Resistência.

Nota:

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