Ela Disse | 2022

Ela Disse | 2022

Estreia amanhã nos cinemas o filme Ela Disse (She Said), dirigido por Maria Schrader ( O Homem Ideal e a série Nada Ortodoxa). O longa reconstrói o processo de investigação iniciado pelas jornalistas do New York Times, Megan Twohey (Carey Mulligan) e Jodi Kantor (Zoe Kazan) com o intuito de denunciar a prática de assédio sexual no meio político, empresarial e, aos poucos, percebem que sua prática se dava de forma especialmente forte na indústria do cinema. A reportagem cuja elaboração acompanhamos ao longo de todo o filme deu início ao movimento que ficou mundialmente conhecido como #MeToo.

Apresentando brevemente outros casos de assédio no primeiro ato — envolvendo, inclusive, o ex-Presidente Donald Trump —, a trama de Ela Disse se desenvolve a partir dos casos de assédio envolvendo o ex-produtor cinematográfico da Miramax Films, Harvey Weinstein. Conhecemos os crimes sexuais cometidos por ele a partir de relatos fortes de algumas de suas muitas vítimas.

A construção de Ela Disse, com roteiro de Rebecca Lenkiewicz, é capaz de oferecer ao espectador um retrato bastante rico de como o acúmulo de poder é um fator que torna a prática de assédio sexual algo ainda mais comum. Conhecemos o modo pelo qual o criminoso atuava por meio dos relatos das (personagens das) vítimas. Assim, a montagem direciona desde o início o espectador a sentir empatia por elas, não oferecendo possibilidades para que se questione ou minimize seus relatos. Ao contrário, a construção dramática e toda a dificuldade daquelas mulheres em falar dos episódios — mesmo quando já se passaram décadas do ocorrido — leva o espectador a ter certeza de que há ali violências que interromperam carreiras e provocaram traumas que não podem ser ignorados.

O grande desafio que guia Ela Disse não é, pois, saber se houve o assédio ou o estupro, mas justamente mostrar a complexidade desses crimes, indicando como provocam traumas profundos e levam as vítimas a manterem silêncio. Para além do constrangimento de revelar os casos, o grande poder do assediador e os contratos de fidelidade feitos contribuem para que o silêncio e o medo prevaleçam. Ao longo da jornada, Twohey e Kantor conseguem fazer com que várias mulheres se abram e relatem as experiências traumáticas que viveram. Ainda assim o receio de retaliações e processos faz com que peçam a não exposição dos seus nomes, reforçando, uma vez mais, a violência não só física, mas também psicológica a que foram submetidas. Desse modo, o principal desafio colocado às jornalistas passa a ser a obtenção de documentos e autorização para que os nomes sejam usados na reportagem, fortalecendo a denúncia que se propõem a fazer.

Embora seja um filme biográfico e com alta carga dramática, o longa pega emprestado vários recursos de outros gêneros. O abuso no uso do plano-detalhe ao retratar as jornalistas, a trilha cuidadosamente construída para reforçar uma tensão constante nos momentos decisivos, a sucessão de adversidades pelas quais precisam passar as personagens, tudo isso constrói uma ambientação em que as jornalistas se tornam espécie de heroínas. Esses recursos, embora constituam um clichê de gênero, são válidos quando usados para propósitos nobres como esse (reforçamos isso na crítica de Argentina, 1985).

Algumas incoerências, porém, também chamam a atenção na construção da narrativa. No princípio, o inimigo é claramente identificado como “o sistema”. Trump sendo eleito Presidente, mesmo pesando sobre ele a séria acusação de assédio, emerge como a prova mais evidente de que se está diante de uma sociedade machista. Essa indicação presente no primeiro ato, contudo, se perde ao longo do desenvolvimento da trama. Do pouco que conhecemos dos maridos e da família de Twohey e Kantor, vemos sempre homens dispostos a cuidar das crianças, se sobrecarregando para que a mulher possa desenvolver seu trabalho. Também no New York Times os personagens masculinos são sempre solícitos, companheiros na investigação. Assim, o problema que se anuncia como sistêmico, pouco a pouco passa a estar centrado em Harvey Weinstein, o vilão personalizado na trama.

A personalização do mal produz alguns efeitos. Inevitavelmente, enfraquece a denúncia ao torná-la algo pessoal, não sistêmica. Por outro lado, contudo, facilita a assimilação da proposta e evita algumas situações embaraçosas. Por seu caráter biográfico, Ela Disse se aproxima do tom documental. Com isso, retratar os maridos como sujeitos que também são atravessados por práticas machistas — mesmo que os diferenciando dos assediadores — poderia gerar um mal estar. Do mesmo modo, filmado em grande parte em espaços que simulam as redações do New York Times, indicar ali o caráter estrutural do machismo poderia comprometer a imagem positiva que se faz do jornal. Ao fugir desses embaraços, Maria Schrader aceita a contradição de denunciar os traços do machismo, mas apenas da porta pra fora do jornal e dos ambientes familiares.

Por fim, é importante destacar outra limitação importante do filme: o feminismo, o assédio, a violência, enfim, o objeto fundamental da denúncia que conduz a trama envolve essencialmente pessoas brancas. Se o criminoso, Harvey Weinstein, é um homem branco, não há qualquer depoimento de mulher negra que tenha sido vítima. Essa ausência pode ser explicada de inúmeras formas. Talvez não haja mesmo vítimas negras, o que, por si só, seria um retrato de como esses ambientes artísticos e corporativos são majoritariamente brancos. Talvez esse seja um sinal de que as mulheres negras sequer foram procuradas, ou quem sabe se encontram ainda em condições mais vulneráveis e, por isso mesmo, não ousaram denunciar. Seja como for, essa é uma ausência que não pode ser ignorada e mereceria algum tipo de reflexão do próprio longa. Para dizer com Marilena Chauí (1986, p. 33), “em sociedades marcadas pela violência, os silêncios, o implícito, o invisível também precisam ser observados”.

Referência

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. 

NOTA

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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