Cine dos Campos: 1º Festival de Cinema de Ponta Grossa

Cine dos Campos: 1º Festival de Cinema de Ponta Grossa

Por que o Coletivo Crítico, que já cobriu a poderosa Mostra Internacional de Cinema de São Paulo neste ano, vai até a cidade de Ponta Grossa, no Paraná, para acompanhar o Cine dos Campos? Antes de falarmos do que aconteceu no primeiro festival de cinema de Ponta Grossa, cabe-nos uma resposta um tanto pessoal para a pergunta.

O Coletivo é composto por oito pessoas vivendo em diferentes regiões do país. Sequer nos encontramos todos pessoalmente, mas nossa ligação com o Cinema nos fez chegar até aqui. Nosso objetivo sempre foi muito singelo e sincero: queremos escrever sobre aquilo que vemos, abrir espaço para a diversidade cinematográfica e nos tornarmos uma via interpretativa relevante aos amantes da sétima arte. Em um processo muito mais rápido do que imaginávamos, começamos a participar de cabines de imprensa e, finalmente, de festivais. É emocionante ver que fizemos parte de um dos grandes movimentos do Cinema no Brasil quando cobrimos a Mostra de São Paulo! Mas ainda há uma necessidade que sempre nos comove: o cenário da cinefilia brasileira.

Nas grandes capitais existem alternativas excelentes e maior acesso ao Cinema Brasileiro e aos filmes fora do circuito hollywoodiano, entretanto, ainda é pouco. Festivais independentes se tornam uma válvula de escape importante para quem quer conhecer o que se produz no Brasil além dessas fronteiras industriais. Então, é de nosso interesse incentivar um tipo de cinefilia que rompa com o habitual e  reforce a arte de país subdesenvolvido como meio de resistência à colonização intelectual e artística. Quando retornamos às nossas raízes, questionamos a constituição de nossa cultura e tomamos a arte como reflexo de nossa diversidade, estamos evoluindo.

Eu, Vinicius Costa, sou morador da cidade de Ponta Grossa desde 2011. Vindo do litoral paranaense, cheguei em um lugar com quase 20 vezes mais habitantes. O fato de aqui existirem dois cinemas já era surpreendente para alguém que raríssimas vezes conseguia viajar até a cidade mais próxima para ver um filme na telona. Logo esse deslumbramento se tornaria frustração ao ver que as salas dos cinemas não passavam de um comércio do produto hollywoodiano. Posso colocar dois momentos como exceções: consegui assistir Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, com pouco mais de 10 pessoas na sala (a maioria, meus amigos), e Joaquim, de Marcelo Gomes, tendo a sala inteira para mim e o lanterninha conferindo se havia plateia ou não para desligar a projeção (mas lá estava eu).

Quando descobri que acadêmicos e professores da Universidade Estadual de Ponta Grossa organizavam eventos relacionados ao Cinema, tive a oportunidade de ver grandes filmes no teatro da cidade. Tempos depois estaria eu ajudando na construção de um projeto sobre Cinema e Filosofia, exibindo filmes pouco convencionais ao mainstream gratuitamente para a população. Até hoje, mesmo com o encerramento de tais projetos, me recordo orgulhosamente de ter visto olhos brilharem com a oportunidade de uma cinefilia diferente daquela que estávamos habituados aqui.

Em uma cidade como Ponta Grossa, que elegeu com ampla maioria, votou novamente e, com certeza, votaria mais vezes em um certo candidato fascista, aqui, onde ainda se vê acampamentos em quartéis, o Cinema é um ato de resistência. Essa onda conservadora não há de viver tranquilamente e sem oposição. A democratização do cinema é um passo importante nessa direção. São ideias como o Cine dos Campos que me garantem isso. Estando aqui, é meu dever prestigiar o primeiro festival de Cinema de Ponta Grossa. Trazer filmes independentes de vários lugares do Brasil, filmes de gente preta, de gente que não se deixa definir e aprisionar, filmes sobre a periferia, sobre identidade de gênero, filmes sem fronteiras, é um ato necessário e importante. Por isso o Coletivo Crítico apoia e incentiva pequenos festivais.

Parabéns a todos os organizadores e artistas que construíram o Cine dos Campos: 1º Festival de Cinema de Ponta Grossa. Vida longa!

O Festival

O Cine dos Campos é o primeiro festival de Cinema de Ponta Grossa, Paraná. O evento reuniu 23 filmes curtas-metragens de norte a sul do país em mostra competitiva, desde ficções, documentários e experimentações audiovisuais. A curadoria tem o mérito de expor ao público o Cinema em sua diversidade de formas e estilos, mas criando uma linha que conecta os filmes pelas urgências de suas temáticas, intimistas e também políticas. Além das sessões, foi ofertada uma oficina introdutória destinada à estética e direção de documentários, ministrada pelo professor Eduardo Baggio (UNESPAR). Ao final das sessões o espectador pôde ouvir um pouco mais sobre a realização das obras nos bate-papos com participantes dos projetos.

Durante as intervenções dos organizadores, era visível a emoção e a ligação que nutrem pela cidade. Nascidos e/ou criados aqui, eles retornam justamente para esse território com a necessidade de fomentar a arte cinematográfica por aqui. Algumas vezes foi frisada a intenção de colocar em movimento a criatividade e a resistência que aqui habitam. É como se do Cine dos Campos emanasse uma energia que mostra a todos que somos capazes de produzir Arte. E, certamente, também há uma força transmitida aos realizadores, muitos que chegam pela primeira vez em festivais com suas obras e têm a experiência de vê-la na tela grande, dividindo a sala com pessoas desconhecidas e emocionadas com seus filmes. 

No terceiro e último dia, um momento especial: a exibição de Marte Um. O filme brasileiro que atualmente concorre a uma vaga no Oscar, dirigido por Gabriel Martins, dificilmente chegaria ao povo pontagrossense, visto que os cinemas daqui não tem o costume de fugir do mainstream hollywoodiano. A sessão, assim como todas as outras ações do Cine dos Campos, foi gratuita. As pessoas envolvidas merecem todas as congratulações possíveis, mas, por outro lado, é triste perceber que somente assim é que poderíamos ter acesso a esse filme tão brasileiro, belo, emocionante, verdadeiro e tão necessário para tomarmos consciência de nossa condição social. Obrigado, Cine dos Campos e Marte Um.

Cabe-nos dar créditos e laurear a organização do evento, então aqui vão seus nomes e funções:

Talita Prestes (Direção Artística e Programação), Gabriel Borges (Chefe de Curadoria e Programação), Juliana Brum (Coordenação de Produção), Pedro Gomes (Produção), William Biagioli (Consultoria), Gabriel Borges (Curadoria), Camila Macedo (Curadoria), Gustavo Pinheiro (Curadoria), Cássio Kelm (Jurado), Merylin Ricieli dos Santos (Jurada), Kleber Bordinhão (Jurado), Ariadne Grabowski (Design Gráfico), Catharina Iavorski (Assessoria de Imprensa), Valeria Laroca (Assessoria de Imprensa), Eduardo Baggio (Oficineiro) e Belgotex do Brasil (Patrocinadora).

O Cine dos Campos foi realizado a partir do Programa Municipal de Incentivo Fiscal à Cultura (PROMIFIC) e com incentivo da Prefeitura de Ponta Grossa, da Secretaria de Cultura de Ponta Grossa e do Conselho Municipal de Política Cultural de Ponta Grossa.

Os Filmes

Foram 583 inscrições de curtas-metragens validadas. O exaustivo trabalho da curadoria do evento selecionou 23 para exibição na mostra competitiva. Foram eles:

  • As Velas do Monte Castelo (dir: Lanna Carvalho, 2022, Fortaleza / CE)
  • Feliz Aniversário, Rodrigo (dir: Rodrigo Sousa & Sousa, 2022, Rio de Janeiro / RJ)
  • Falta Pouco (dir: Wellington Sari, 2022, Curitiba / PR)
  • O Fim da Imagem (dir: Gil Baroni, 2022, Curitiba / PR) 
  • Inimigo (dir: Alisson Severino, 2021, Fortaleza / CE)
  • Os Monóculos da Minha Vó (dir: Ana Torres, 2022, Uberlândia / MG)
  • O Fruto (dir: Gabriel Chemim, 2020, Ponta Grossa / PR)
  • Magnético (dir: Cassemiro Vitorino e Ilka Goldschmidt, 2021, Chapecó / SC)
  • Depois de Cora (dir: Lak Shamra, 2021, Cidade de Goiás / GO)
  • Linhas (dir: Luis Gomes, 2022,  Mesquita / RJ)
  • Tá Fazendo Sabão (dir: Ianca Oliveira, 2022, Santo Amaro / BA)
  • Pedro faz chover (dir: Felipe César de Almeida, 2022, Recife / PE)
  • Lina (dir: Melise Fremiot, 2022, Nova Iguaçu / RJ)
  • A Viagem sem Fim (dir: Priscyla Bettim e Renato Coelho, 2021, São Paulo / SP)
  • Arrorró (dir: Rafael de Almeida, 2022, Goiânia / GO)
  • O hábito de habitar (dir: Nicolás Pérez, 2021, Foz do Iguaçu / PR)
  • Madrugada (dir: Gianluca Cozza, Leonardo da Rosa, 2022, Pelotas / RS)
  • Cidade Entre Rios (dir: Leonardo Mendes e Weslley Oliveira, 2021, Teresina / PI e Timon / MA) 
  • Blackout (dir: Rodrigo Grota, 2022, Londrina / PR)
  • Cabiluda (dir: aColleto, Dera Santos 2022, Recife / PE)
  • Trem Parada Dura (dir: Lucas Gomes da Silveira, 2022, Curitiba / PR)
  • Quebra Panela (dir: Rafael Anaroli, 2021, Condado / PE)
  • Cojones, Marina (dir: Mia Lima Rocha, 2022, Rio de Janeiro / RJ)

A mostra foi dividida no que podemos chamar de cinco linhas:

  1. Entrar pela janela – sugestivo nome para marcar os filmes iniciais do evento, obras que nos colocam em choque com uma imagem que passam das lentes das câmeras à tela (janela) do cinema, é nosso retorno às projeções públicas após a experiência caótica dos últimos anos.
  2. Memórias de um passado vivo – a resistência da memória que se eterniza pelo Cinema, histórias que precisam ser contadas e vistas atentamente.
  3. Linhas de força – histórias que foram colocadas às bordas, linhas que cruzam a periferia e as grandes cidades, vidas que se entrelaçam em contos de resistência.
  4. Ocupação – aqui estão filmes que ocupam a tela com narrativas que muito são ignoradas, são obras que versam sobre colonização, espaços rompidos e a reconstrução forçada.
  5. Sair ao Cinema – por fim, obras que pensam sobre si mesmas, sobre o que é o Cinema e suas possibilidades.

O júri do festival premiou em cinco categorias, além de um troféu especial a Luciano Negro Drama, maquinista de Marte Um que estava presente na sessão:

  • Melhor montagem: Magnético – direção de Cassemiro Vitorino e Ilka Goldschmidt, 2021, Chapecó – SC.
  • Melhor direção: O Fim da Imagem – direção de Gil Baroni, 2022, Curitiba – PR.
  • Melhor atuação: Reinaldo Junior por Linhas – direção de Luis Gomes, 2022, Mesquita – RJ.
  • Melhor direção de fotografia: Cidade Entre Rios – direção de Leonardo Mendes e Weslley Oliveira, 2021, Teresina – PI e Timon – MA.
  • Melhor filme: Lina – direção de Melise Fremiot, 2022, Nova Iguaçu – RJ.

O Coletivo Crítico, depois de assistir aos 23 filmes, escolheu seus cinco preferidos para uma breve análise. 

  • Falta Pouco (Wellington Sari, 2022)

O filme curitibano tem 23 minutos de duração, tempo suficiente para elaborar uma complexa teoria sobre a imagem. A história não se passa em um encontro real, mas sempre através de vídeos, seja uma chamada pelo Google Meet, ou uma gravação antiga. Há também os momentos de sonho, que são o mote para a conversa virtual entre duas pessoas, Monique e Wellington. Ela está elaborando um podcast sobre o sumiço de duas jovens holandesas no Panamá, partindo de fotografias encontradas na câmera das meninas. Ele busca por um vídeo feito no Ano Novo. 

No que se transforma a imagem quando a capturamos? A memória é eternizada, ou é apenas uma abertura para interpretações infinitas daquele momento? A imagem parece estar sempre corrompida por um olhar que nunca é puro, seja do espectador, seja da memória de quem a fez. É como se a imagem pura, a verdade, fosse sempre inalcançável. O Cinema é uma abertura, uma janela fantástica.

  • Cojones, Marina (Mia Lima Rocha, 2022)

Existem filmes que têm a magia de tornar as coisas mais leves, tornar o mundo mais tragável mesmo nas piores situações. A diretora Mia Lima Rocha consegue esse feito em Cojones, Marina, um filme jovial e dançante, que nos faz sorrir. A situação é uma festa e o flerte entre jovens. Nina quer encontrar um rapaz bonito para beijar, e acha. Mas ele, Marco, está triste por ter sido abandonado e traído por sua ex-namorada, a dona da festa, Marina. Por mais que pareça impossível sair um romance dali, é a energia de Nina que consegue tirar Marco de seu momento de “fossa”. 

O espectador é ligado à vivacidade de Nina pela quebra da quarta parede. Ao melhor estilo Fleabag, ela conversa conosco sobre suas frustrações  e esperanças naquele flerte. Até que tudo se transforma em música: Nina sai pelas ruas cantando, como sua última arma para conquistar o rapaz. Deu certo! Ela consegue o beijo e terminamos todos sorrindo à beira mar.

  • Pedro Faz Chover (Felipe César de Almeida, 2022)

Um dia onde nada dá certo. Você pega o ônibus errado para o serviço, tem seu celular roubado, cai no chão tentando perseguir o assaltante. É o caso de Pedro, que então é relegado a perambular pelas ruas de Olinda. Mas surge uma palavra amiga, uma mão que dá apoio, um outro rapaz que lhe oferece ajuda ao ver o que lhe acontece. Pedro reluta, mas aceita e os dois passam a andar juntos. Até o novo assalto. Descalço, sem dinheiro ou celular, Pedro só tem o novo amigo. É então que começa a descoberta de si.

Com um senso de humor e estético belíssimo, Felipe César de Almeida nos presenteia com uma obra sincera sobre o amor entre dois homens. Quando os jovens encontram uma artista de rua que os leva para um bar underground da cidade, eles descobrem um ao outro de uma nova forma. Pedro faz chover ao dançar e extravasar o que antes negava, faz cair uma chuva de afeto sobre nós, que percebemos que nem tudo estava perdido naquele fatídico dia. 

  • Cabiluda (aColleto, Dera Santos, 2022)

Também produzido em Pernambuco, Cabiluda é a obra mais irônica da mostra. Organizando uma festa em sua casa, Dimitri convida alguns amigos e seu novo romance para curtirem a noite. A moça, seu novo affair, leva uma amiga para também se divertir na festa. Dimitri é claramente um rapaz de esquerda, veste uma camiseta sobre a marcha da maconha, tem um pôster do Che Guevara no quarto e um discurso “libertário”. Tudo parece correr bem, a não ser pela sensação crescente de que alguma coisa está atrás de Dimitri. Há um clima de desconfiança e barulhos que incomodam o rapaz. 

A festa acontecendo, bebidas, drogas e beijos. Aquilo que parecia perseguir Dimitri na verdade estava dentro dele mesmo. O rapaz resolve incluir a amiga de sua ficante nos “amassos” dos dois. É claro que elas não aceitam e se assustam com a atitude. Ele revela sua verdadeira face escrota até mesmo perseguindo as garotas como se elas fossem culpadas pelo fim da festa. Agora sozinho em casa, Dimitri é surpreendido pela Cabiluda, o monstro que o persegue, a vingança contra o esquerdomacho. 

  • Quebra Panela (Rafael Anaroli (2021)

Quebra Panela, também de Pernambuco, é um dos mais originais curtas-metragens exibidos no Cine dos Campos. Assim como em Falta Pouco, aqui há uma teoria sobre o Cinema e o poder da imagem. A história se passa em uma vizinhança que tem sua rotina alterada com a gravação de um filme. Inicialmente, não vemos o set de filmagem, mas ouvimos o tempo todo a equipe trabalhando do lado de fora da casa de Solange, avó de Estela (também, sugestivamente, chamada de “Tela” ou “Telinha”).

Os dois mundos começam a se fundir: a vida na casa de Dona Sol e o Cinema do lado de fora. Uma palavra dita na casa interfere no que acontece lá fora e no próprio filme que assistimos. Estela pede para que a avó corte a maçã, mas o que corta é a cena. Solange faz as unhas do pé do vizinho que solta um grito quando ela corta seu dedo. “Cortou” – diz o diretor no set. Telinha é reivindicada pela mãe a fazer parte das filmagens, falta apenas a avó relutante. Mas não por muito tempo. Quando resolve não apenas espiar pela fresta, mas atravessar a porta e entrar no filme temos a fusão completa. “Todo mundo é artista”, diz um dos personagens caminhando na frente da casa de Dona Sol. A Arte absorve aquela vizinhança e a magia acontece. 

O que nos interessa aqui é muito mais incentivar festivais como o Cine dos Campos, apoiar atitudes de pessoas que reconhecem a força da Arte para a vida do povo brasileiro, do que elencar melhores ou piores filmes. Ficam aqui esses títulos e nomes de realizadores como sugestões, que, quando o leitor os ouvir, merecem toda a atenção.

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