Pepi, Luci e Bom

Pepi, Luci e Bom

De 1939 a 1975 a Espanha foi governada por Francisco Franco, um general do exército espanhol que sempre fora simpático ao nazifascismo e que chegou ao comando do governo após um golpe de Estado. 

 A sua política, denominada “Franquismo“, foi marcada pelo nacionalismo, conservadorismo, anticomunismo e o culto à sua personalidade. Francisco Franco morreu em 1975 e, com ele, anos depois, o Franquismo. Em 1978 a Espanha passou a ter uma nova constituição. Em 1979 houve eleições gerais e nesta transição à democracia, surgiu em Madrid um movimento contracultural chamado “Movida“, que logo depois se expandiu por toda a Espanha.

A Movida foi marcada pela liberdade. Tudo que havia sido reprimido no período franquista nos anos anteriores, agora transbordava nas ruas de Madrid, sobretudo sob a forma de uma arte provocadora e underground, que era materializada em cinema, artes plásticas, teatro e música.

Entre os maiores “agitadores culturais” da Movida madrilenha estava Pedro Almodóvar, um jovem que, no auge do franquismo, havia saído da pequena Calzada de Calatrava rumo à capital espanhola e, lá chegando, logo passou a desempenhar um trabalho burocrático na empresa estatal de telefonia  (como é difícil imaginá-lo nessas circunstâncias!). Com o salário, comprou sua primeira câmera filmadora (uma Super 8).

É neste cenário, no ano de 1980, que Pepi, Luci e Bom é lançado pelo então estreante em longas-metragens Pedro Almodóvar, tendo sido filmado apenas aos finais de semana e contando no elenco com atores e atrizes que trabalharam sem receber pagamento em dinheiro. Inclusive, é nesta obra que a famosa parceria profissional do diretor e da atriz Carmen Maura se inicia. 

O filme já traz, em maior ou menor escala, todas as características que marcam a filmografia do diretor espanhol: a temática sexual, as narrativas que beiram o absurdo, o protagonismo das personagens femininas, o uso absolutamente peculiar que faz das cores, o uso de psicotrópicos, etc. Contudo, neste que é seu primeiro longa-metragem, nota-se também as características típicas de uma produção independente e feita com baixíssimo orçamento, levada a cabo por uma equipe que, mesmo talentosa, era inegavelmente inexperiente. Por isso, percebe-se que tecnicamente o filme carece de maiores cuidados, sendo, talvez, a forma como muitas cenas são enquadradas, a questão que mais chama atenção pelo “desleixo”.

O contexto social e político espanhol é facilmente identificado em Pepi, Luci e Bom, sobretudo no que é pertinente ao afã de contrariar a “moral e os bons costumes” da ditadura franquista. Reputo ser a primeira cena do filme o “grande farol” que irá indicar o que vem à tona nos minutos seguintes.

Obedecendo à inquietude (do filme e do diretor), o filme é iniciado por uma cena forte: Pepi (Carmen Maura) está em sua casa entretida ouvindo música e colando figurinhas em um álbum quando um policial sisudo bate à porta. Ele prontamente dirige-se às plantas que Pepi cultiva. São pés de maconha. Ela, com a intenção de livrar-se da prisão, oferece sexo para que o policial faça vista grossa e não a prenda. Ele se interessa pela proposta indecorosa. Contudo, Pepi impõe uma condição ao ato: que seja feito sexo anal, posto que ainda é virgem. O policial ignora aquela condição e, levantando a sua saia, a penetra violentamente. Ao ouvir o grito de dor de Pepi, assusta-se e diz “você era virgem mesmo!”. Assim, a primeira cena do filme, que começa com uma jovem divertindo-se em casa, termina com um horroroso estupro.

Como já dito, as linhas gerais da obra já estão expostas aí: o policial representa o franquismo em sua essência e, ao longo do filme, sempre replica o autoritarismo, a violência, a opressão, a discriminação, a misoginia, o anticomunismo, etc. Já Pepi e sua turma representam exatamente a juventude que era reprimida pelo fascismo e agora experimentava o frescor dos ares democráticos: trazem consigo a diversão, a liberdade de expressão, (mas também a sexual e a artística), o uso de drogas, a paixão pela música, etc.

 Após Pepi ser vitimada pelo Policial, decide se vingar, no que será o grande mote da narrativa: ela vai atrás de Bom (Alaska), esposa do agente da lei, e decide inseri-la no cenário underground da cidade (ou seja, inseri-la na Movida), apresentando-a a um mar de possibilidades antes inimagináveis. Bom passa a envolver-se com Luci (uma cantora de uma banda punk interpretada por Eva Siva) e, jogando-se de corpo e alma na efervescência trazida pela Movida, passa a não ler mais a sua vida pelas lentes dos pudores do conservadorismo franquista. Transformada, passa a também transformar a relação que possui com seu marido, tentando deixar para trás aquele passado de sofrimento e violência, o que não ocorre sem resistência (valendo-me do título de um livro de Angela Davis, é sempre importante lembrar que “a liberdade é uma luta constante”). 

Em Pepi, Luci e Bom, percebe-se que Pedro Almodóvar, desde seu primeiro longa-metragem, já está comprometido em construir cenas que, divertidas, também tem o intuito de criticar/chocar (o que faz ainda mais sentido naquele contexto pós-ditadura fascista). É assim que, entre o golden shower envolvendo Luci e Bom e as erecciones generales, competição de qual jovem era o “mais bem dotado” (o próprio Pedro Almodóvar participa da cena) com clara alusão às “elecciones generales” de 1979, o diretor constrói sua narrativa que alia maravilhosamente uma ácida crítica político-social e um entretenimento de notável qualidade. 

O filme está disponível no catálogo do Belas Artes à La Carte. Use o cupom COLETIVOCRITICOMES e ganhe 30 dias grátis.

Como sugestão, leia aqui no Coletivo Crítico a crítica de “Cría Cuervos”, filme dirigido por Carlos Saura e que trata, metaforicamente, do contexto político do regime franquista na Espanha.

Nota

Author

  • Eduardo Gouveia

    O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

    View all posts

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *