Regra 34 | 2022
Uma pessoa muitas vezes é julgada superficialmente por sua profissão, posição social ou cargo que exerce em determinado local na sociedade, mas um pipoqueiro pode ser serial killer nas férias de verão, um empresário sério pode ser uma drag queen toda sexta-feira a noite e, no caso de Simone, – protagonista de Regra 34, novo filme de Julia Murat – uma estudante de Direito pode ser uma camgirl adepta ao sadomasoquismo nas horas vagas. Murat tenta em seu filme fazer um paralelo entre essas duas nuances da vida de Simone (Sol Miranda). O longa mescla cenas de seu cotidiano como estudante – aspirante a Defensora Pública – e sua obscura e pervertida vida sexual. É aberta uma discussão acerca de moral e conduta social e também sobre a relação entre o corpo e os limites (ou a ausência deles) na busca pelo prazer.
Com um discurso que beira ao panfletário sobre pautas importantes como a violência contra a mulher, machismo estrutural e opressão de minorias, são mostradas diversas cenas de conversas entre os colegas estudantes de Direito – ora na mesa do bar, ora em salas de aula –, que soam artificiais, engessadas e pouco fluidas, assim como os depoimentos de vítimas que chegam à defensoria pedindo ajuda; gente pobre, sofrida e completamente exposta como se fosse em uma propaganda de tv.
Simone é uma mulher negra com cerca de 30 anos, com um corpo que foge aos padrões de beleza convencionais, ela assume seu cabelo black power e tem apreço por sua liberdade sexual. Através de conversas com Nat, uma amiga praticante de BDSM (Isabela Mariotto), e de estímulos de seus clientes dos chats online, ela começa a se interessar por certas práticas como: asfixia erótica, tapas, mordidas, e a sentir prazer com situações ligadas à dor. Até aí, tudo bem. Quando começamos a mergulhar em um universo desconhecido, é comum que um súbito interesse nos leve a certo grau de obsessão e de busca por mais daquilo que nos satisfaz. Mas, assim como nas partes referentes ao universo de “Simone estudante”, as cenas que mostram a “Simone sexual” são feitas através de um olhar afastado, que traz novamente a sensação de desconexão, ou até falta de imersão nas sensações pretendidas. As encenações voltam a soar como em um comercial podado ou algum episódio de seriado de horário nobre.
Sobre o título propriamente dito – que não é mencionado nenhuma vez em Regra 34 (não que carecesse de obrigação) –, trata-se de um termo da Internet que sugere que, como regra, a pornografia na web existe sobre todos os temas concebíveis. O conceito é conhecido como uma fanart de qualquer coisa, mas em seu “duplo erótico”. A regra 34 diz: se existe uma coisa, existe uma versão pornô daquela coisa na Internet. Então nisso o filme se sai bem, realmente vemos “Simone” e “a versão pornô de Simone”. Esses dois universos são muito bem delineados pelo tom das cenas de cada espectro. O primeiro sempre à luz do dia e o segundo sempre à noite ou no escuro. Também é interessante notar a relação com a dor em cada um deles: enquanto em um a dor é sofrimento (a penosa vida de uma defensora pública que absorve e se fere com o sofrimento alheio), no outro a dor é prazer (a excêntrica mulher que goza apanhando e sendo enforcada na cama).
Voltando ao universo BDSM, quando Simone pede ajuda a sua amiga expert, sobre segurança em certas práticas, tudo passa muito batido por ela, pois as duas estão distantes, em estados diferentes e se comunicam somente pela internet. Simone não quer esperar para botar em ação o que é demandado por seus espectadores e por seu próprio desejo. Ela adota uma postura de submissão nas performances online com seu parceiro e amigo colorido, Coyote (Lucas Andrade), o que resulta em doações mais generosas e mais admiradores à sua persona kinky.
A dupla passa a fazer jogos fetichistas mais ousados nas transmissões, coisas que violam regras severas dentro da comunidade BDSM. Qualquer um que ler o básico sobre o assunto, percebe que existem restrições bem claras quanto ao uso de objetos perigosos e condutas que possam apresentar risco de morte, porém Simone já esqueceu dos limites e das regras e essa vibe “sem regras” que o filme faz dela, contraria uma prática que é justamente sobre respeitá-las. Em raros momentos são feitas menções a como funciona a dinâmica BDSM, além de uma breve busca no Google feita por ela, sobre SSC (são, seguro e consensual) e pequenas chamadas de atenção da amiga de São Paulo (ignoradas). Os termos são muito jogados de qualquer maneira em Regra 34, para uma obra que dedica tanta atenção ao tema.
Murat não cria um conflito entre as facetas da protagonista, os dois universos são completamente distintos na unidade do filme, um nunca chega a incomodar diretamente o outro ou a se cruzar. Soam como dois filmes diferentes, montados, porém não entrelaçados. A maneira como as questões que parecem caras ao filme são postas em tela, é de uma visão política polida, não sinceramente engajada e que explora a evidente rachadura do problema racial e da deficiência social brasileira. As críticas em Regra 34 são feitas com uma plasticidade que não nos permite uma imersão leal às questões. O filme quer reforçar signos de poder de fala, militância e dá voz ao protagonismo negro, mas o faz com uma voz dita de uma maneira um tanto difícil de escutar, sem camadas e sem densidade.
Filme assistido via cabine e imprensa
crédito da foto: Amina Nogueira
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