Garoto dos Céus | 2022

Garoto dos Céus | 2022

A capital egípcia Cairo, onde se passa a maior parte de Garoto dos Céus, novo longa do diretor Tarik Saleh, é berço da segunda universidade mais antiga do mundo. A Al-Azhar foi fundada em 988 como centro de estudos islâmicos, resistindo até os dias atuais, mantendo como foco as disciplinas religiosas e o estudo do alcorão. Foi a única universidade árabe que substituiu e incorporou o mundo moderno, lecionando hoje disciplinas não-religiosas e cursos como medicina e engenharia. Até 1962, era exclusivamente masculina.

A admissão na Al-Azhar é bastante criteriosa. Trata-se de uma universidade de alto reconhecimento, acessá-la é sinônimo não só da vontade de Allah, mas também de uma quase certa elevação de status social. Seus professores detém o título de Sheikh, e seu líder é chamado de Grande Imam, a maior autoridade religiosa do Egito.

É nas entranhas da Al-Azhar que o diretor Tarik Saleh percorre seu suspense político-religioso, através do protagonista Adam (Tawfeek Barhom), um pescador simplório do interior que, inserido numa família rígida e inteiramente masculina, é admitido na prestigiada universidade. “Você tem um cérebro que pensa mais do que o necessário”, são as palavras que o pai de Adam solta em reação. “Mas se Allah quer que você vá, nem mesmo seu pai pode impedir”.

A ida de Adam à capital impulsiona a rede de intrigas que virá. Nos primeiros momentos do protagonista na universidade, contemplamos (e compartilhamos) seu deslumbramento ante o proeminente edifício, onde logo ele nota que, apesar de ainda estar inserto num mundo puramente masculino e religioso, a rigidez extrema de sua casa paterna ficou para trás. Não há ali as chibatadas do pai em castigo ao cheiro de tabaco sentido em um de seus irmãos. Há, ao revés, tabaco, boates, Red Bull, café americano, heavy metal e livros, uma infinidade de livros que o fascina. O tom inicial de Garoto dos Céus é dado pela descoberta e pelo espanto de Adam às coisas do “mundo”.

“Sua alma ainda é pura. Mas cada segundo nesse lugar irá corrompê-la”. Ao fazer amizade com a pessoa “errada”, Adam é introduzido num esquema de manipulação e controle do Estado perante a Al-Azhar, forçadamente passando a atuar como “anjo”, ou seja, informante. A morte do Grande Imam implica na eleição de seu sucessor, e é justamente nessa escolha que a segurança estatal deseja interferir, para que o novo líder seja alinhado ao governo.

Apesar de Garoto dos Céus ter sido premiado no Festival de Cannes 2022 como melhor roteiro, é justamente esse o elemento que não só mostra-se simplista, como também pouco surpreende. Os escândalos que ele claramente traz, a fim de alimentar o artifício da “surpresa” de filmes do gênero, não são capazes de espantar o espectador porque não são atrelados entre si e conduzem a narrativa para lugar algum.

A interferência estatal em Al-Azhar é apresentada com o objetivo de ascender alguém que seja alinhado ao presidente do Egito, e impedir que um líder extremista do jihad seja elevado. Nessa dança que Adam se vê obrigado a dançar, ele é levado de um lado para outro, ganhando a confiança e a desconfiança de muitos. Como um homem extremamente tímido, que fala baixo e é até desajeitado, subitamente passa a ser detentor de uma sabedoria inata que faz bom uso das palavras e é ouvido por todos, sem que o espectador acompanhe essa evolução no personagem. Ele oscila entre súbito orador e um cabisbaixo e calado garoto com inconstância e estranheza.

De fato, os maiores dilemas do filme (o destino de Adam e a escolha de um novo líder), com a mesma simplicidade que são colocados, dão voltas para logo serem resolvidos. Sem adentrar na trama em específico, é como se personagens fossem assassinados e descartados sem qualquer consequência muito concreta ou preocupante.

Mais novo informante do Estado, Adam periodicamente precisa encontrar Ibrahim (Fares Fares), uma espécie de militar que conduz o protagonista no esquema de manipulação da eleição do Grande Imam. Os encontros se dão numa cafeteria americana, com uma irônica e tosca discrição: cada qual com seu café, sentam-se em mesas muito próximas, e ambos fingem falar ao celular enquanto conversam olho a olho entre si. Há uma clara e compreensível aversão dos personagens a tudo que é americano, ao mesmo tempo que parece que a ocidentalização do mundo árabe é inevitável.

O próprio personagem de Ibrahim é inconsistente. Obriga Adam a agir em favor do Estado, ameaçando sua família dentre outras coisas, e de súbito adquire um apreço pelo garoto que o faz querer protegê-lo, apreço esse que o espectador não vê acontecer.

Em que pese a inconsistência do roteiro, Garoto dos Céus é um filme de muitos méritos. A grandeza e a beleza dos templos e mesquitas é de fato impressionante, e adentrar o universo de Al-Azhar, um centro de estudos milenar, é interessante por si só. A narrativa dá ao notável monumento universitário um ar sombrio, principalmente nas cenas noturnas, quando circular não parece natural naquele lugar. Os quartos dos estudantes, pequenos e apertados em beliches, se assemelham a prisões, o que Tarik Saleh contrasta com a liberdade (ainda que sob controle) de acesso ao conhecimento e aos livros proporcionada por Al-Azhar.

O diretor conduz, ainda, planos abertos belíssimos, particularmente quando mostra acontecimentos simultâneos, homens por toda cidade do Cairo em pausa no horário de reza. Há (e muitos) religiosos, estudantes, trabalhadores, todos na mesma humilde posição ajoelhada, em silêncio. É fascinante como a devoção que torna possível essa unidade de tantas pessoas no mesmo gestual, e por outro lado, assustador notar o quanto é tênue que essa beleza se torne instrumento de controle pela manipulação religiosa.

Garoto dos Céus está entre os pré-selecionados a concorrer ao Oscar 2023 de Melhor Filme Internacional. A premiação em Cannes por certo é um precedente que lhe favorece. Entretanto, esse mesmo reconhecimento talvez eleve demais as expectativas do espectador no que se refere ao ponto em que ele mais se vende: o roteiro.

Nota

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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